ROBERTO SMERALDI
Falta de informação e equívocos caracterizam a consulta pública sobre o Plano Decenal de Energia, que vai até o final do mês
FALTA DE informação e equívocos caracterizam a consulta pública sobre o Plano Decenal de Energia, em andamento até o final do mês. Não se comparam opções alternativas e se compram promessas de lobistas, tanto na relação entre clima e energia quanto a respeito dos bolsos do consumidor e do contribuinte.
Apesar de o plano de energia ignorar o plano de clima, todos concordam que combustíveis fósseis são um problema: nem sequer o governo assume essa escolha. Pelo contrário, justifica o investimento em termoelétricas como uma alternativa, suja, mas inevitável, a partir do fato de que ambientalistas teriam impedido a construção de usinas hidroelétricas.
Mesmo sem saber quais seriam as usinas abortadas por causa de ambientalistas, a questão-chave é que tanto o governo quanto os que criticam o plano acabam repassando a mesma ideia, isto é, que hidroelétricas emitiriam menos carbono do que as termoelétricas.
Esse equívoco decorre do fato de que o Brasil possui parte de um milagre energético chamado Itaipu, a mais eficiente usina de grande escala do mundo. Devido a condições únicas de queda e localização, ela atinge menos de 0,6% das emissões de uma geração equivalente por térmicas. Além disso, possuímos outras duas usinas excepcionalmente eficientes, em Segredo (PR) e Xingó (SE), que emitem menos de 2% em relação a uma térmica. Juntas, geram quase um quinto de nossa eletricidade.
Esse padrão não tem parentesco com a realidade da Amazônia, onde temos quatro usinas, todas emitindo mais carbono do que as térmicas. É o próprio inventário oficial das emissões de gases de efeito estufa que confirma isso, embora calcule apenas uma parte das emissões, aquelas da superfície do reservatório.
Em três casos -Balbina (AM), Curuá-Una (PA) e Samuel (RO)-, a emissão atinge uma escala descomunal, muito superior à de uma usina a carvão que produzisse a mesma energia. No outro caso, o de Tucuruí (PA), as emissões do reservatório são equivalentes às de uma térmica a gás, e se considerarmos as emissões completas -incluindo as de turbinas, vertedouro, cimento e desmatamento dos entornos-, também passamos o padrão de uma usina a carvão.
Isso acontece porque, em regiões tropicais com muita biomassa -como é o caso da Amazônia-, há enorme emissão de metano, o gás de efeito estufa mais impactante. Os cientistas explicam isso comparando os lagos no meio da floresta a enormes garrafas de refrigerante recém-abertas.
É justamente na Amazônia que são planejadas as novas grandes hidroelétricas, nos rios Madeira, Xingu e Tapajós: trata-se de verdadeiras bombas, em termos de impacto sobre o clima, agravadas pela falta de governança nos arredores, que gera mais desmatamento.
Não se deve hostilizar a energia hidroelétrica em si, que jogou e pode jogar papel importante no desenvolvimento do país, mas não se pode confundir o termo renovável com carbono neutro. Não existe almoço de graça, como diria Milton Friedman: existem fontes com balanços mais favoráveis, como bagaço de cana, eólica ou solar, mas não há novas Itaipus.
Essa constatação leva ao ponto crucial do plano: em vez de um páreo entre lobistas para decidir quem é menos sujo -térmicas ou hidroelétricas na Amazônia?-, deveríamos focar a eficiência energética como opção de geração de emprego e de vantagem competitiva, rumo a um desenvolvimento duradouro e sólido.
A meta primordial do plano deveria ser a de reduzir drasticamente a energia que jogamos pelo ralo. De acordo com o TCU (Tribunal de Contas da União), ela passa (apenas na distribuição) dos 20% do total que produzimos, mais que o dobro da Argentina, quatro vezes mais que o Chile e sete vezes mais que a Alemanha. Joga-se fora o equivalente a todo o consumo dos Estados de Minas Gerais, Bahia, Ceará e Pernambuco.
O pior é que o TCU revela que esse desperdício é tolerado e não se tomam sequer medidas sem custo, de tipo meramente regulatório, para estimular as concessionárias a evitá-lo. O tribunal alerta que essa omissão é "determinante" das pressões para gerar mais energia, com altos custos, prazos maiores e mais vulnerabilidade frente a possíveis apagões.
O último relatório do TCU sobre o desperdício -de outubro do ano passado- nem sequer foi respondido por qualquer responsável. Se somarmos ao segmento da distribuição os da geração e do consumo, repararemos que nossa eficiência poderia quase dobrar, com um potencial de investimentos que supere a atual matriz baseada no desperdício.
O consumidor paga a conta da energia jogada fora e a economia global paga aquela da crise climática.
ROBERTO SMERALDI , 48, jornalista, é diretor da Oscip Amigos da Terra - Amazônia Brasileira.
Folha de S. Paulo
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