A fraude de Barra Grande foi esquecida?
O consórcio Energética Barra Grande S.A. – conhecido como BAESA e formado pelas empresas Alcoa, Votorantin, Bradesco, Camargo Correa e CPFL – vem recebendo diversos prêmios, em diversas áreas, por parte de entidades públicas e privadas. O que parece já estar esquecido nessas premiações é que o recente episódio da polêmica e irregular licença a este empreendimento acabou causando uma das maiores tragédias sobre a biodiversidade do sul do Brasil.
A BAESA se baseou em um EIA-RIMA fraudulento, entregue ao IBAMA pela empresa Engevix. Neste relatório foi sonegada a informação da presença de mais de 6 mil hectares de floresta com araucária em estado virgem ou avançado de regeneração, que juntamente com os mil hectares de campos naturais formavam mais de 85% da área alagada. A empresa apresentou um gráfico, em seu estudo, que dava conta de somente 9% de florestas, o que depois se comprovou que eram 70% de florestas. No tal relatório, era afirmado que na área afetada “a maior parte a ser encoberta é constituída de pequenas culturas, capoeiras ciliares e campos com arvoredos esparsos”, e que “a formação dominante na área a ser inundada pelo empreendimento é a de capoeirões que representam níveis iniciais e, ocasionalmente, intermediários de regeneração”. O documento inclusive afirmava que a obra não traria graves prejuízos a bens ambientais importantes ou protegidos pela legislação. Também foi completamente ignorada a
presença da bromélia Dyckia distachya, que constava na lista da flora ameaçada do Brasil (IBAMA,1992) e era endêmica dos rios da região, estando hoje praticamente extinta na natureza. A ameaça a extinção também se deu nos peixes exclusivos de corredeiras, que ali viviam e a uma infinidade de espécies pouco estudadas e que ainda não tiveram nenhum acompanhamento ou monitoramento satisfatórios.
O assunto só veio à tona quando a empresa já estava com um muro de 185 metros de altura quase construído e que inundaria mais de 116 km de rio, com a floresta que foi escondida pela empresa e ignorada pelo IBAMA, pois veio das mais de mil famílias desalojadas, muitas sem indenização, que trancaram os acessos à barragem. O governo acabou por reconhecer o erro, mas, apesar da pressão dos movimentos sociais e ambientalistas, deu carta branca à BAESA, alegando o fato consumado, prejuízos econômicos dos gastos já despendidos na obra.
Apesar de a área ser definida como de Extrema Importância para a Conservação da Biodiversidade, pelos mapeamentos do MMA (2003), pertencer à Zona Núcleo da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, reconhecida pela UNESCO como Patrimônio Natural Mundial e protegida pela Constituição Federal, o IBAMA e o MMA não tomaram providências para sua proteção legal, quando da emissão das licenças ambientais, entre 2001 e 2005. Destruiu-se com o coração da floresta mais contínua e exuberante da bacia do rio Pelotas-Uruguai, justamente onde o vale
íngreme do rio não permitia a agricultura ou outras atividades econômicas, fato que não é o caso do planalto, acima do vale, onde as florestas restantes são escassas e muito isoladas e impactadas. Depois de Barra Grande, ainda sobram florestas consideráveis a montante, na área agora sujeita por outra hidrelétrica: a UHE de Pai Querê.
Em 2004, a empresa foi obrigada a assinar um Termo de Compromisso com o governo federal e a justiça, sendo que muitas pendências duram até hoje (ver aqui). Segundo o MAB, também estão pendentes indenizações com algumas famílias atingidas.
Vale lembrar que a empresa continuou realizando os desmatamentos quando houve uma liminar, que durou alguns dias, suspendendo o corte de árvores da área.
Um dos aspectos mais patéticos neste triste episódio foi a constatação de que o fechamento das comportas da hidrelétrica se deu de forma apressada, quando da emissão da L.O. (Licença de Operação), em julho de 2005. Para o consórcio foi uma maneira de não gastar nenhum tostão a mais na supressão de metade da vegetação florestal que tinha permanecido e que ficaria afogada com a barragem, e “não perder mais tempo” para retirá-la. Mas não foi só isso, também foi uma maneira de impedir que as ações na justiça, por parte das ONGs, tivessem algum efeito e “atrasassem” o fechamento das comportas e a geração de energia por parte da hidrelétrica. Assim, afogar de vez a floresta foi uma maneira de resolver com celeridade a questão. Ou seja, garantir que o objeto das ações não tivesse mais sentido, pois a natureza já tinha sido destruída irreversivelmente. Como resultado, parte da floresta afogada, até hoje, está apodrecendo embaixo de um reservatório de 9,2 mil hectares de águas praticamente paradas.
Apesar de todas as irregularidades e pendências, o consórcio BAESA ganhou os seguintes prêmios (retirado da página da empresa):
- Prêmio Empresa Cidadã ADVB – 2005, 2007, 2008, 2009, 2010
- Prêmio Empreendedor José Paschoal Baggio – 2006, 2008
- Prêmio Fritz Müller – 2007, 2008, 2009
- Prêmio Empresa Amiga da Criança – 2008, 2009.
- Excelência em Gestão Sustentável – 2008, 2010.
- Prêmio Responsabilidade Social – 2008
- Empresa Amiga da Criança – 2009
- Prêmio Ser Humano – 2009
- Prêmio Ser Humano Oswaldo Checchia – 2010
Como uma empresa que desalojou centenas de famílias, muitas das quais ainda esperam indenização, recebe prêmios de “empresa cidadã”, de “amiga da criança”, de “responsabilidade social”, de “ser humano”? Como uma empresa que causou a destruição dos remanescentes florestais mais exuberantes e contínuos da Mata Atlântica, na bacia do rio Pelotas, configurando-se em uma das maiores tragédias à biodiversidade do sul do país – ainda por cima baseada em um relatório considerado fraudulento – recebe prêmios de “desenvolvimento sustentável”, de “gestão socioambiental” e de “preservação ambiental”? Como conceber que um órgão ambiental governamental, a FATMA, possa conceder um prêmio a uma empresa que esteve envolvida com desastres desta magnitude?
Essa situação de hipocrisia ambiental deve ser denunciada e ilustrar o nível de comprometimento econômico que toma conta de setores públicos e privados, envolvidos com estes empreendimentos. Sem dúvida, fazem parte de uma página infeliz de nossa história na área ambiental, resultado revoltante de um “toma-lá-dá-cá” de favores entre setores empresariais e governamentais, para “dourar a pílula” do processo de degradação atual. Trata-se de um enorme desrespeito às famílias desalojadas e um enorme delito aos milhares de hectares cobertos por plantas nativas e animais silvestres que desapareceram debaixo d’água, além de uma afronta a todas as pessoas que lutaram contra esse triste e histórico crime contra a natureza.
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Para saber mais sobre o caso da UHE Barra Grande, acesse o livro Barra Grande: a hidrelétrica que não viu a floresta.
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