segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Devemos ter medo de Dilma Dinamite?

Antonia Melo, uma mulher que Dilma
prefere não escutar
As mulheres que a primeira presidente prefere não escutar

Por Eliane Brum

Antonia Melo é uma mulher forte, reta. O Brasil não sabe, porque ela vive bem longe do poder central, mas todos nós temos uma dívida histórica com Antonia que há décadas luta pelos direitos humanos e pelo desenvolvimento sustentável em uma das regiões mais conflagradas da Amazônia. Hoje, Antonia é uma das principais vozes contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte – a maior e mais controversa obra do PAC. É neste ponto que a história de Antonia Melo cruza com a de Dilma Rousseff, que mesmo antes de ser presidente era chamada por Lula de “mãe do PAC”.


Em 2004, as lideranças da região do Xingu, na Amazônia, foram surpreendidas pela informação de que os boatos eram verdadeiros: apesar do compromisso assumido no programa do candidato Lula e contra todas as promessas de campanha, o projeto de Belo Monte estava na mesa de Dilma Rousseff, ministra de Minas e Energia. O deputado federal Zé Geraldo (PT-PA) convidou então um grupo de lideranças para uma audiência com a ministra, em Brasília, onde poderiam expor suas preocupações. Lula havia sido eleito com o apoio maciço do movimento social do Xingu e, neste momento, era fácil acreditar que seriam bem recebidos. E, principalmente, escutados.

Antonia Melo preferia declinar do convite porque, naquele período, estava em curso o julgamento do caso dos meninos emasculados de Altamira, no Pará. E ela havia dedicado mais de uma década da sua vida à luta para que os assassinos fossem descobertos e punidos. Mas a insistência foi grande, e Antonia viajou a Brasília para compor o grupo de lideranças que se encontraria com a ministra. O que aconteceu ali eu escutei da sua boca, recentemente, quando estava na sua casa, em Altamira, para entrevistá-la. Os olhos de Antonia se encheram de lágrimas e sua voz embargou. Fiquei pensando no que poderia causar tanta dor àquela mulher que enfrentava grileiros de peito aberto, já havia sido ameaçada de morte e perdera vários companheiros assassinados por pistoleiros. Só depois de ouvir o relato compreendi que, para alguém com a dignidade de Antonia Melo, o sentimento de ser traída poderia ser devastador. Foi isso que ela me contou, enquanto um dos seus netos pequenos dormia no quarto.

- Quando chegamos à audiência, a Dilma demorou um pouco para aparecer. Aí veio, com um cara do lado e outro do outro, como se fosse uma rainha cercada por seu séquito. Nós estávamos ali porque, se era desejo do governo estudar esse projeto, queríamos ter certeza de que seria um estudo eficiente, já que sabíamos que todos os estudos feitos até então eram uma grande mentira, sem respeito pelos povos da floresta nem conhecimento do funcionamento da região. Então, já que o governo queria estudar a viabilidade de Belo Monte, que o fizesse com a seriedade necessária. A Dilma chegou e se sentou na cabeceira da mesa. O Zé Geraldo nos apresentou e eu tomei a palavra. Eu disse: "Olha, senhora ministra, se este estudo vai mesmo sair, queremos poder ter a confiança de que será feito com seriedade”. Assim que eu terminei essa frase, a Dilma deu um murro na mesa. Um murro, mesmo. E disse: "Belo Monte vai sair". Levantou-se e foi embora.

Quando Antonia Melo terminou seu relato, compreendi que sua emoção se devia à lembrança da humilhação sofrida e à descoberta do autoritarismo do governo que ela tinha apoiado. Mesmo assim, Antonia só se desfiliaria do PT cinco anos e muitas decepções depois, em 2009.

Lembrei-me deste episódio ao ler a reportagem da revista americana Newsweek, da semana passada, que tem Dilma Rousseff na capa, fato amplamente comemorado como um triunfo feminino. Na chamada de capa, o título é: “Dilma Dinamite: Onde as mulheres estão vencendo”. Dentro, o perfil da presidente brasileira tem o seguinte título: “Não mexa com Dilma”. Ao ver Dilma Rousseff discorrendo na ONU, em Nova York, sobre as vantagens da ascensão das mulheres ao poder, pensei imediatamente nas mulheres que a presidente não escuta no Brasil. Entre elas, as mulheres do Xingu.

Sobre Dilma Rousseff, a editora-chefe da Newsweek, Tina Brown, disse à coluna de Monica Bergamo, na Folha de S. Paulo. “Dilma, e não Lula, é hoje o político alfa do Brasil”.
Como mulher, esse papo de “alfa” me dá um pouco de sono. É tão masculino, não no sentido dos homens interessantes que estão surgindo nesta época, mas no sentido John Wayne dos trópicos. Na cultura colaborativa que está nascendo, nada menos moderno do que achar inovador uma mulher alfa. Quando as empresas e também os governos têm o desafio de se horizontalizar, valorizar os aspectos autoritários de uma liderança, seja ela um homem ou uma mulher, é manter o debate em marcha a ré.

Reconheço o valor de Dilma Rousseff ser a primeira mulher na presidência do Brasil e a primeira mulher a abrir a Assembleia Geral das Nações Unidas como líder de uma nação. Mas este fato só ganha densidade se o discurso abandonar os velhos chavões sobre o feminino – e a prática se afastar do autoritarismo no país que essa mulher governa. O que se passou foi o contrário disso. As partes interessantes do discurso de Dilma – como puxar as orelhas das nações que geraram a mais recente crise econômica global e a defesa do estado palestino – nada tem a ver, pelo menos diretamente, com o fato de Dilma ser mulher.

Já quando a presidente se refere ao protagonismo feminino, desde a campanha o discurso é uma coleção de clichês distanciados da realidade. Por exemplo. “Na língua portuguesa, palavras como vida, alma e esperança pertencem ao gênero feminino. E são também femininas duas outras palavras muito especiais para mim: coragem e sinceridade”. Truque pobre de retórica, já que as palavras morte, tortura e violência, assim como covardia e mentira também pertencem ao gênero feminino na língua portuguesa. E todas essas palavras pertencem de fato aos homens e mulheres encarnados na vida, independentemente do gênero.

Antes, em evento na ONU sobre a participação das mulheres na política, ao lado de Hillary Clinton e Michelle Bachelet, Dilma afirmara: "As mulheres são especialmente interessadas na construção de um mundo pacífico e seguro. Quem gera vida não aceita a violência como meio de solução de conflitos". Com todo o respeito que Dilma merece como presidente legitimamente eleita, assim como por várias qualidades e aspectos de sua trajetória, isso é uma enorme bobagem. Alguém acredita que as mulheres são menos violentas que os homens?
Podem ser, por questões históricas e culturais, violentas de uma forma diferente. Mas até isso não é muito preciso. E mais estranho soa quando é dito por uma mulher conhecida por destratar seus subordinados a ponto de levar alguns às lágrimas e dá murros na mesa como qualquer chefe bruto que ninguém quer ter não por ser exigente, mas porque berrar com alguém é desrespeitoso – e, como as empresas já começam a aprender, improdutivo. E, neste caso, pouco importa se o destempero seja praticado por um homem ou uma mulher. Há um bom tempo, esse tipo de comportamento deixou de ser confundido com firmeza e autoridade, independentemente de gênero.
Outro aspecto raso dessa afirmação sobre as mulheres e a geração da vida se evidencia no fato de que vivemos um momento histórico onde os homens estão sendo chamados a ocupar seu lugar na educação e no cuidado dos filhos. Neste momento, valorizar a biologia na gestação da vida como algo que tornaria as mulheres mais aptas a governar apenas por serem mulheres é um tanto arcaico. Gerar a vida vem ganhando significados mais profundos no mundo complexo e com fronteiras menos definidas em que temos o privilégio de viver.  
É bonito quando Dilma Rousseff diz no seu discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU o seguinte: “O desafio colocado pela crise é substituir teorias defasadas, de um mundo velho, por novas formulações para um mundo novo”. Dilma refere-se à crise econômica global gerada pela Europa e pelos Estados Unidos. Mas seria importante que olhasse para dentro do país que governa e percebesse que não há nada mais velho do que a sua política para a Amazônia, muito semelhante à política da ditadura que ela combateu, tanto nas obras monumentais quanto na maneira autoritária como têm sido impostas à população brasileira e aos povos diretamente atingidos. 
A maior obra do PAC, a hidrelétrica de Belo Monte, financiada em grande parte por dinheiro público, está a anos-luz de qualquer exemplo de desenvolvimento sustentável para a Amazônia.Isso dito não por mim, mas pelos maiores especialistas brasileiros na área. Sem contar que Belo Monte tem sido imposta não só aos povos da floresta, mas a todos nós, ameaçando uma das mais ricas biodiversidades do planeta, estratégica para o futuro da humanidade, e também condenando à destruição a cultura e a vida de indígenas, ribeirinhos e agricultores.

A truculência no trato de Belo Monte está mais próxima das práticas do “velho mundo” do que das “novas formulações para um novo mundo”, para usar a expressão da presidente. A política do governo tem um bom exemplo neste vídeo em que o atual presidente do Ibama, Curt Trennepohl, deixa claro o modus operandi do Planalto – seu antecessor, Abelardo Bayma, aliás, pediu demissão por não suportar a pressão da Eletronorte para liberar Belo Monte sem o cumprimento das exigências da lei. Vale a pena assistir ao vídeo: é curto e contundente.

Quando estive na região que será alagada pela hidrelétrica, na Volta Grande do Xingu, deparei-me com a cena abaixo, protagonizada pelo Consórcio Construtor Belo Monte (CCBM), formado, convém não esquecer, por estatais como Eletrobrás, Chesf e Eletronorte, fundos de pensão e de investimento, como Petros, Funcef e Caixa FIP Cevix, construtoras como OAS, Queiroz, Galvão e Mendes Júnior, entre outras. Até a Vale entrou no consórcio por pressão do governo. A foto abaixo seria cômica, não fosse trágica. Revela a ideia que o Consórcio faz da nossa inteligência. Sim, sim, a Norte Energia destrói a floresta amazônica, mas recicla lixo.
 
Visão ambiental na Amazônia. (Foto: Eliane Brum / Arquivo Pessoal )
A mesma presidente que enalteceu as vantagens da liderança feminina na ONU não recebeu as mulheres do Xingu que, com grande esforço, viajaram até Brasília para levar a sua voz e as suas reivindicações. Para quem viaja de ônibus, o percurso do interior dos travessões da Transamazônica até Brasília é muito mais penoso do que pegar o avião presidencial rumo a Nova York. A história do encontro que não houve me foi contada pela principal liderança feminina de Cobra Choca, comunidade de agricultores da Volta Grande do Xingu que tem colaborado para transformar o Brasil num dos maiores produtores de cacau do mundo – e fazem isso mantendo boa parte da floresta em pé.

Ana Alice Santos migrou do Paraná, onde trabalhava como doméstica desde os 6 anos de idade, para a Amazônia, onde se tornou agricultora. Ela me contou sua experiência com Dilma Rousseff comendo um cacau diante de sua casa cercada por floresta. E em nenhum momento foi possível esquecer que, se a sociedade não se fizer ouvir, toda a vida ali será afogada em breve por Belo Monte.

- Eu votei na Dilma. E a maior decepção que eu tive foi o diálogo que ela não teve com a gente. Em março, no mês das mulheres, nós fomos até Brasília: 1.800 pessoas. E ela não nos recebeu. Mostrou que não dá importância nenhuma para as mulheres da Amazônia. Chamaram até a tropa de choque, mas a gente saiu pacificamente. Fomos para conversar, não para brigar. Saímos derrotadas, mas tentamos de novo entre o final de abril e o início de maio. E ela mandou alguém da Casa Civil pegar o documento que trazíamos. Viajamos três dias e duas noites. E a presidenta não nos escutou. Foi quando decidi não votar mais. Não compensa você votar em quem não te representa. Não compensa votar numa presidenta que é uma vergonha para as mulheres. Porque nós, mulheres, tínhamos de fazer a diferença. E como a Dilma está fazendo a diferença? Matando as mulheres da Amazônia? Matando os seres humanos que aqui sobrevivem? Matando a nossa floresta, as nossas espécies dentro do rio? Esta presidenta mulher está matando a nossa vida ao matar o Xingu.

Em seu discurso histórico na ONU, Dilma Rousseff afirmou: “Junto minha voz às vozes das mulheres que ousaram lutar, que ousaram participar da vida política e da vida profissional, e conquistaram o espaço de poder que me permite estar aqui hoje”. Ao ouvir essa parte do discurso, pensei que era de mulheres como Antonia Melo e Ana Alice que Dilma falava em sua retórica politicamente correta. E que deveria dar minha contribuição para que essas vozes que tentam alcançar Dilma, mas que por ela têm sido repelidas, pudessem ser escutadas – se não pela presidente, pelo menos pela sociedade brasileira.

Vozes das mulheres do Xingu, cuja vida, a cultura e o futuro dos filhos estão ameaçados pela política para a Amazônia da “mãe do PAC”. Como mulher urbana, moradora de São Paulo, que compreende que o que acontece na floresta repercute não só no Brasil, mas no planeta, diz respeito não só aos filhos e netos delas, mas também aos nossos, compartilho da mesma angústia ao testemunhar a imposição de Belo Monte e o início do rastro de destruição que ela já começou a provocar.
Gostaria que a primeira mulher presidente botasse em prática no Brasil o que disse nos Estados Unidos: “Quem gera vida não aceita a violência como meio de solução de conflitos”. Não por ser mulher, mas porque dignidade não depende de gênero. 

ELIANE BRUM Jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três
livros de reportagem: Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que  Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo). E codiretora de dois documentários: Uma História Severina e Gretchen Filme Estrada.
elianebrum@uol.com.br
@brumelianebrum 

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