domingo, 2 de outubro de 2011

"Eternos Vândalos"


Obras UHE Santo Antônio no rio Madeira
Foto: Durval Lara

Sergio Abranches
Ecopolítica - MP da presidente Dilma Rousseff que ajusta área de unidades de conservação para permitir as hidrelétricas em construção na Amazônia é usada em investida contra importantes unidades de conservação no país.
Segundo conta a jornalista Marta Salomon, em excelente matéria para o Estado de São Paulo, parlamentares pegam carona na MP da presidente Dilma Rousseff publicada no último dia 16 de agosto para, por meio de emendas, reduzir área equivalente a 6,5 mil km2, de importantes unidades de conservação do país.


A MP foi editada para abrigar lagos e canteiros de obras das usinas hidrelétricas de Tabajara, Santo Antônio e Jirau, em Rondônia. Alterou os limites dos Parques Nacionais da Amazônia, Campos Amazônicos e Mapinguari. Segundo Marta Salmon, duas outras unidades deverão ter os limites modificados em breve para o licenciamento ambiental de quatro hidrelétricas no Rio Tapajós. A MP autorizou, também, a mineração de ouro em área de 10 quilômetros no entorno do Parque Nacional de Mapinguari, que perdeu 17,5 mil km2.
Agora, a MP serve também para iniciar uma campanha de redução de unidades de conservação, que vem sendo programada pela bancada ruralista. Emendas de carona na MP das hidrelétricas pretendem reduzir 6,5 mil km2 de unidades de conservação. O pretexto, em geral, é o fato de que pessoas que ocupavam áreas da reserva quando de sua criação ainda não foram indenizadas. Um erro de gestão, que pode ser corrigido, é usado como razão para promover um dano irreversível em áreas importantes de preservação natural.
O senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA), que se opôs à operação Arco de Fogo, em 2008, a qual deu início a um processo que permitiu transformar municípios de alto desmatamento em áreas de desmatamento zero, agora investe contra as unidades de conservação de seu estado. Flexa Ribeiro era um dos expoentes da comitiva que aportou em Tailândia e Paragominas, para pressionar o Ibama e a Polícia Federal no início da Arco de Fogo. Eu estava lá e vi o constrangimento que a comitiva criou. Acompanhei a operação em Paragominas e registrei os flagrantes de desmatamento, desperdício de madeira e produção clandestina de carvão. A ilegalidade era geral, do portão de entrada das madeireiras até o fundão de seus terrenos, onde ficavam os fornos das carvoarias.
Com as medias de comando e controle e os incentivos à redução do desmatamento, municípios que antes estavam na lista de maiores desmatadores iniciaram políticas positivas que reduziram significativamente o corte ilegal de floresta. Alguns deles, como Paragominas, estão, hoje, na ponta do programa“municípios verdes” que pretende criar um novo padrão de desenvolvimento local no estado. O senador ficou do lado errado naquela época. E parece querer continuar do lado errado. Agora está propondo a redução, em praticamente metade da Floresta Nacional (Flona) de Jamanxin, como revela Marta Salomon em sua matéria, e da Reserva Biológica de Nascentes Serra do Cachimbo (Rebio do Cachimbo).

Fonte: Greenpeace
Eu conversei com cientistas florestais que me disseram que a Flona de Jamanxim tem uma área de aproximadamente 10% dos seus quase 10 mil km2 que já está desmatada. O ajuste dessa parcela está sendo cuidadosamente negociado pelo ICMBio, o Ministério Público do Pará e o governo estadual. A proposta de redução de 5,2 mil km2 feita pelo senador paraense contraria os pareceres técnicos e atropela essa negociação. Segundo os cientistas e técnicos que ouvi, a retirada de parcela tão grande inviabilizaria a floresta. A floresta nacional é uma área de proteção relativa, porque permite a produção madeireira por meio de concessões. Já tem, portanto, função econômica.

Fonte: Via Rural
Outra proposta do senador, de redução em pouco mais da metade da área da Reserva Biológica do Cachimbo, foi considerada absurda e infundada pelos especialistas com quem conversei pela manhã. Segundo eles, como o próprio nome indica, é uma unidade importantíssima que protege centenas de nascentes perenes, que formam rios das bacias do Xingu e do Tapajós. Está em região de transição entre a Floresta Amazônica e o Cerrado. Tem grande riqueza de espécies vegetais em ambientes sub-montanos de Floresta Ombrófila Densa e Aberta, Floresta Estacional e Floresta Aluvionar e extensas áreas abertas com Campinarana, além de possuir manchas de Vegetação Rupestre e Buritizais. Esta reserva está sob pressão de grileiros e qualquer “flexibilização” a colocaria em perigo fatal.
Fonte: www.serradacanastra.com.br
O deputado Odair Cunha (PT-MG), quer reduzir em 70% o Parque Nacional da Serra da Canastra. É uma unidade de enorme importância ambiental, histórica e patrimonial do estado de Minas Gerais, que abriga nascentes do Rio São Francisco. Essa proposta condena a reserva à extinção. A Serra da Canastra “é uma espécie de berçário de rios situado bem no divisor de duas bacias hidrográficas: a do rio Paraná e a do rio São Francisco”.
Em sua Viagem às nascentes do Rio São Francisco, em abril de 1919, Auguste de Saint-Hilaire a descreveu assim:
“Enquanto tive diante dos meus olhos a Serra da Canastra, desfrutei de um panorama maravilhoso. À direita descortinava uma vasta extensão de campinas e à esquerda tinha a serra, do alto da qual jorravam quatro cascatas.”
Ao chegar à Canastra, a cachoeira “Casca D’Antas” inspira o viajante francês a escrever:
“O verdor das plantas é de um viço extraordinário, que a proximidade das águas se encarrega de conservar. Defronte da cachoeira o horizonte é limitado por montanhas coroadas de rochas, que pertencem à Serra do Rio Grande.
Para ter uma ideia de como é fascinante a paisagem ali, o leitor deve imaginar estar vendo em conjunto tudo o que a Natureza tem de mais encantador: um céu de um azul puríssimo, montanhas coroadas de rochas, uma cachoeira majestosa, águas de uma limpidez sem par, o verde cintilante das folhagens e, finalmente, as matas virgens, que exibem todos os tipos de vegetação tropical.”
Fonte: www.serradacanastra.com.br
O engenheiro Geraldo Rocha, que dirigiu o jornal A Noite, no Rio de Janeiro, no anos 1930, publicou no início dos anos 1950 o livro O Rio São Francisco, volume 184 da coleção Brasiliana. A obra inspirou a criação da Comissão do Vale do São Francisco, da qual nasceria a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco – Codevasf. Ele não era ambientalista, podia ser até considerado um “desenvolvimentista”, mas, visionário, já chamava a atenção para o assédio que ameaçava a saúde do rio.
No capítulo com o sugestivo título de “Os Eternos Vândalos”, ele diz que:
“Revelamo-nos, assim, um povo de incapazes, de destruidores de recursos naturais, imprevidentes que não cogitam do dia de amanhã. Na fase angustiosa que o mundo atravessa é perigosíssimo persistirmos em tal incúria.”
Sobre o desmatamento das margens do Velho Chico pela expansão das siderurgias, escreveu assim:
“Em futuro próximo, as matas devastadas influirão para acentuar a diminuição do regime pluviométrico, secando os mananciais. As margens arenosas, desprotegidas, desmoronam com facilidade, e dentro em pouco, o grande rio da penetração dos pioneiros, será inacessível mesmo às canoas, estendendo-se numa zona desértica da Serra da Canastra ao Atlântico, cujas conseqüências políticas, determinarão o esfacelamento do Brasil.”
Mais atual, só se esse alerta fosse transcrito para nossa empobrecida prosa cotidiana. Geraldo Rocha previu, com precisão, os danos que causaríamos ao São Francisco. Os vândalos parecem mesmo eternos e estão por toda parte.
Em entrevista com produtores, na pequena Chapada Gaúcha, em Minas Gerais, porta de entrada para o parque Grande Sertão Veredas, relevante reserva ambiental e cultural do ameaçado Cerrado brasileiro, na fronteira entre Minas e Goiás, ouvi os mesmos argumentos sobre não pagamento de indenizações, para extinguir a unidade de conservação. Mas por trás da campanha não estava o objetivo de fazer justiça aos que foram deslocados de suas terras. Estavam as águas do parque. Passei por uma enorme fazenda de soja, cujo proprietário anda desesperado com a falta de água para irrigação. Já não a encontra mais nem no subsolo. Sua propriedade está 100% desmatada. Ele aterrou nascentes e veredas para plantar soja. Agora se inquieta porque desertificou suas terras. Quer ter acesso às áreas férteis e às águas do Grande Sertão. O parque se chama assim porque guarda uma parte importante do território em que se passa o extraordinário romance de João Guimarães Rosa Grande Sertão Veredas.
Chapada Gaúcha fica próximo a Unaí. Quando estive lá, ainda se falava no assassinato de fiscal do Ministério do Trabalho que havia flagrado trabalho escravo na região. Há algumas semanas, um guarda florestal do Instituto de Florestas de Minas havia sido morto por combater a produção de carvão ilegal com desmatamento de mata nativa do Cerrado. Outro guarda me disse que estava querendo ser transferido porque já havia sido jurado de morte pelos carvoeiros.
Há sempre uma banda podre nesse assédio, como me disse um especialista florestal. Ela demarca a fronteira entre aqueles que têm apenas uma visão equivocada sobre o papel do ambiente natural na economia, mas querem ficar do lado da lei, e aqueles que estão e querem ficar fora da lei. Quase sempre, quando se investiga quem pressiona as áreas de proteção, é possível encontrar produtores mal orientados e uma cadeia de ilegais. Quando se quer alterar as unidades de conservação, sem base técnica e científica, por meio de artifícios que permitem agir nos furos do processo legislativo, estimula-se a continuação e expansão dessas redes ilegais. Cria-se o que, no mercado financeiro, chama-se “risco moral”, um precedente que estimula a ação danosa de outros.
Infelizmente, a própria MP da presidente Dilma Roussef criou esse “risco moral”, estimulando a carona, um expediente espúrio que permite esse ataque oportunista às unidades de conservação.
Se cair uma dessas fronteiras da conservação, outras cairão. As redes ilegais cuidam de ir criando fatos consumados, invadindo os limites das unidades de conservação, vandalizando as bordas, cuja destruição aparentemente justificaria ir retirando fatias das reservas. O Brasil precisa urgente encontrar caminhos mais transparentes e técnicos para tratar de suas unidades de conservação e negociar sua regularização definitiva.
Em coluna recente, Miriam Leitão revelou que estudo dos especialistas Adalberto Veríssimo, do Imazon, e Ruth Nussbaum, do Proforest, filiado à Universidade de Oxford, demonstra que estamos na contramão do mundo em matéria de cobertura florestal.
“(T)odos os países seguiram a mesma trilha: aumentaram o desmatamento no começo do século XX, depois estabilizaram e, em seguida, iniciaram programas de reconstrução das coberturas florestais. O Brasil ainda permanece preso à primeira fase e nos últimos anos tudo o que teve para comemorar foi queda do ritmo da destruição. Este ano nem isso poderá comemorar porque o desmatamento aumentou.


O estudo, que será divulgado no começo de outubro, traz estatísticas e constatações. A primeira é que as leis nos países analisados — Estados Unidos, Inglaterra, China, Holanda, Alemanha, entre outros — favorecem o aumento da cobertura e não o contrário; a segunda é que o desmatamento zero é possível; a terceira é que floresta é riqueza e não obstáculo.”

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