Opinião Sustentável
É impressionante como o poder do capital supera divergências ideológicas e rivalidades políticas. A revista Veja, um dos mais tendenciosos veículos de imprensa do país, é capaz de se alinhar com o governo quando o assunto é a defesa dos interesses das empreiteiras, do agronegócio e das petroleiras. É o que podemos deduzir da edição distribuída neste domingo (nº 2246), com três matérias “ambientais” na sequência (páginas 140 a 152). Em uma das matérias a revista afirma, referindo-se ao código florestal aprovado recentemente nas comissões do Senado, que “O novo código é o primeiro passo para conciliar preservação e desenvolvimento econômico”. Em outra, destaca cientistas que fraudaram pesquisas que associam o aquecimento global à atividade industrial, mas omite uma infinidade de estudos sérios que indicam a natureza não natural do aumento de temperatura que testemunhamos nos dias de hoje. Mas é a matéria de capa que será tratada neste artigo.
É impressionante como o poder do capital supera divergências ideológicas e rivalidades políticas. A revista Veja, um dos mais tendenciosos veículos de imprensa do país, é capaz de se alinhar com o governo quando o assunto é a defesa dos interesses das empreiteiras, do agronegócio e das petroleiras. É o que podemos deduzir da edição distribuída neste domingo (nº 2246), com três matérias “ambientais” na sequência (páginas 140 a 152). Em uma das matérias a revista afirma, referindo-se ao código florestal aprovado recentemente nas comissões do Senado, que “O novo código é o primeiro passo para conciliar preservação e desenvolvimento econômico”. Em outra, destaca cientistas que fraudaram pesquisas que associam o aquecimento global à atividade industrial, mas omite uma infinidade de estudos sérios que indicam a natureza não natural do aumento de temperatura que testemunhamos nos dias de hoje. Mas é a matéria de capa que será tratada neste artigo.
A publicação semanal dos
Civita até que presta alguns serviços ao país denunciando falcatruas que
ocorrem na administração pública, mas costuma exagerar, beirando a leviandade,
quando os fatos comprometem o governo do PT. Não tem a mesma combatividade
contra os tucanos. Simplesmente esqueceu o escândalo da inspeção veicular
existente no Rio Grande do Norte, com conexões em São Paulo, que envolve
tucanos de alta plumagem. Será que essa postura guarda alguma relação com o
fato de a Editora Abril não ter sido contemplada no pacotão de salvamento das
empresas de comunicação promovido pelo governo Lula, que salvou as Organizações
Globo? De qualquer maneira, a liberdade de Veja é necessária num estado
democrático de direito. É melhor convivermos com os excessos inerentes à
democracia, do que com a censura.
O
“estranho” alinhamento de Veja com o governo veio com uma matéria
escandalosamente superficial, recheada de informações parciais e distorcidas,
voltada a desqualificar um trabalho de militância ambientalista de um grupo de
estrelas da Rede Globo. Dezenove atores globais lançaram um movimento (movimentogotadagua.com.br) que tem como
principal instrumento de divulgação um vídeo no qual criticam a construção da
futura Usina Hidrelétrica de Belo Monte, projetada para o Rio Xingu, no estado
do Pará. De acordo com a revista, alguns vídeos postados na internet com a
participação de estudantes de engenharia e economia da Unicamp e da UnB,
além do apresentador Rafinha Bastos, famoso por suas declarações polêmicas
de caráter homofóbico, racista, machista e discriminatório, teriam “nocauteado”
as estrelas da Globo por meio de argumentos inteligentes e supostamente
calcados em pesquisas, em oposição as “tagarelices” e à “desinformação” dos
globais, nas palavras da Veja.
O
histórico de comprometimento das Organizações Globo com o atraso do país,
efetivado na sua estreita relação com setores oligárquicos da política
nacional, faz com que os vídeos dos estudantes e a matéria de Veja tenham algum
apelo junto aos “inconformados” mais desavisados que, caindo na armadilha
fascista da desqualificação pessoal por meio do rótulo “Global” imputado aos
artistas, atacarão o movimento pensando atacar a Globo. Estes que hoje rotulam
os artistas para desqualificá-los, já fizeram o mesmo com comunistas, petistas,
socialistas, ambientalistas, religiosos e tantos outros, tratando-os como
ingênuos, irresponsáveis, loucos ou lunáticos. Da mesma forma já
desqualificaram ONGs sérias, com o argumento de que estão “a serviço de
interesses estrangeiros”. Por que não fizeram o mesmo com o movimento “Sou
Agro”, também estrelado por (outros) artistas globais? Será que é porque seus
interesses ocultos são coincidentes? Cabe perguntar se a motivação de Veja e dos
estudantes é apenas o interesse no debate construtivo ao desenvolvimento do
país ou se há alguma influência das empreiteiras que vivem de dinheiro público,
engordam, direta ou indiretamente, as carteiras de publicidade do grupo Abril e
contratam engenheiros treinees recém-formados, como serão em breve os “cultos”
atores do Youtube favoráveis à Belo Monte.
Feitas
as devidas considerações acerca da motivação da reação, vamos ao debate sobre a
usina. É preciso que se diga que Veja omitiu o fato de que cerca de 350
cientistas e intelectuais brasileiros de diversas instituições públicas e
privadas, incluindo renomadas universidades, encaminharam à presidente Dilma
uma carta criticando a construção da Usina de Belo Monte, com argumentos
científicos que justificam a oposição ao projeto.
Um
dos supostos “golpes” dos estudantes que teria levado a nocaute os artistas, é
a constatação de que o Brasil precisa de incremento na produção energética para
fazer frente à demanda representada pela duplicação do consumo nos próximos dez
anos, considerando a projeção de crescimento de 5% ao ano. Se o Brasil não
atender a esta demanda “a economia vai ficar travada”. Este é um argumento
baseado na lógica de que desenvolvimento é igual a crescimento, uma tese que
vem sendo desmontada pela chamada “economia verde”. Fruto da ganância
capitalista, a política de crescimento contínuo é insustentável e responsável
por danos ambientais, geração de resíduos e esgotamento dos recursos naturais.
Tal política sequer garante distribuição de renda e justiça social, e o colapso
ambiental que provoca leva à crise econômica futura.
Veja
é brilhante na arte da manipulação de números e informações. Destaca o cálculo
de um engenheiro mostrando o percentual de floresta que será alagada em relação
à área total da Amazônia Legal. Claro que esta porcentagem é pequena, mas Veja
não informa que a Amazônia Legal não é só floresta e “esquece” que Belo Monte é
apenas uma das usinas projetadas para a região. Além disso, os impactos de uma
UHE sobre o ecossistema não são restritos às árvores que serão suprimidas, mas
contemplam a alteração da dinâmica hidrológica, a obstrução do trânsito da
fauna aquática, a eutrofização do ambiente, entre outros. Deve-se considerar o
percentual de espelho d’água impactado pelo conjunto das usinas em relação à
bacia hidrográfica. Dizer que metade da área alagada é o próprio leito do rio é
uma típica distorção dos fatos, pois transformar um ambiente aquático lótico
(água corrente) em lêntico (água parada) é uma alteração ambiental negativa
altamente significativa.
Outra
grosseira manipulação dos fatos é cometida acerca da diferença de vazão do Rio
Xingu entre os períodos de maior cheia e de maior seca. Utilizando os próprios
dados publicados pela revista, percebemos que a vazão mínima é de menos de 3%
da vazão máxima. A comparação que a revista usa, mostrando que esta vazão
mínima pode encher 1600 piscinas olímpicas por hora, só não me faz rir porque
eu sei que ela engana leitores que não estão familiarizados com o assunto. Já
que é para manipular números, vamos dar outro exemplo. Se você tem um copo com
250 ml de água e outro com 3% deste volume, ou seja, 7,5 ml, o que você dirá
deste copo? Que está praticamente vazio, não é?
Com base no depoimento de um
cacique, Veja afirma que os índios estão satisfeitos com a obra. Uma rápida
busca no Google mostrará diversos vídeos de manifestações indígenas contra a
usina. Mesmo que nenhum palmo de terra indígena seja alagado, o que é contestado
por muitos pesquisadores e engenheiros, a preocupação dos povos do Xingu é com
a alteração ambiental que a obra causará e que poderá impactar suas terras de
maneira negativa. Qualquer barramento de rio é desastroso para a ictiofauna,
que é uma fonte de alimento importante para índios e ribeirinhos.
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Outro
exemplo de desqualificação reverberada pela Veja é a fala de uma estudante da
Unicamp a respeito da localização do Parque do Xingu. Qualquer brasileiro
médio, ao olhar o mapa, dirá que o Parque está abaixo da barragem, pois em
geral as pessoas, ainda que equivocadamente, consideram que algo que está mais
ao sul “está mais abaixo”. Nem todos sabem que, tecnicamente, em uma bacia
hidrográfica algo está mais abaixo quando está a jusante, e não a montante,
como é o caso do Parque em relação à barragem. Utilizar uma fala que é comum na
linguagem popular para desqualificar o vídeo é altamente tendencioso. A
distância de mil quilômetros do Parque do Xingu até a barragem é um mero
detalhe, porque muito mais próximo do que isso estão várias outras terras
indígenas e importantes unidades de conservação, como a Reserva Extrativista
Rio Xingu e a Estação Ecológica da Terra do Meio, que sofrerão indiretamente os
impactos da barragem.
Energia
hidrelétrica não é energia limpa. Maitê Proença está certa. A frase simplista,
quase infantil de um estudante da Unicamp, que diz que é limpa porque a água
sai como entrou, não deveria embasar matéria jornalística de uma revista que se
diz séria. Reservatórios de usinas hidrelétricas emitem metano oriundo da
matéria orgânica morta em consequência do alagamento, em quantidade muito
superior aos processos naturais que ocorrem na floresta, mesmo quando é feito o
desmatamento das áreas a serem alagadas, pois este procedimento mitiga o
impacto mas não o neutraliza. Além disso, o conceito de energia limpa
fundamentado apenas na emissão de gases do efeito estufa é muito pobre, pois há
vários outros impactos ambientais relacionados à geração de energia
hidrelétrica.
Quanto
ao fator de capacidade da usina, mesmo que seja de 41% como afirma o
“nocauteador” engenheiro Cássio Carvalho, este número é inaceitável para os
dias atuais. A média brasileira de 52%, puxada para baixo pela ineficiente UHE
de Balbina, é bem maior que a de Belo Monte. Diversos técnicos afirmam que Belo
Monte será a usina mais cara e menos produtiva do país. Não podemos aceitar que
uma usina nova seja tão menos eficiente do que a média nacional, pois os
avanços tecnológicos ao longo do tempo deveriam levar ao aumento da eficiência
energética.
Usina termo solar concentrada no deserto de Mojave,
Califórnia, EUA
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Finalmente, um tema que tem pautado
a discussão acerca da matriz energética: o custo da produção do kilowatt/hora.
É verdade que a energia hidrelétrica é muito barata. Um kilowatt/hora custa no
Brasil cerca de R$ 0,05. É bem menos que os valores das fontes alternativas.
Porém, é um equívoco deixar de investir na diversificação da matriz, pois é
justamente o aumento da produção que barateia o custo. A comparação do custo da
energia hidrelétrica com o de energias mais limpas não considera o custo das
externalidades negativas inerentes aos impactos ambientais e sociais das usinas
hidrelétricas. Hoje o Brasil já produz energia eólica competitiva. A revista
Veja cita custos de investimentos em energias alternativas sob os rótulos de
“energia eólica” e “energia solar”. Outra desinformação, não dos artistas, mas
da Veja. O custo a que Veja se refere provavelmente é o da energia
fotovoltaica, aquela produzida a partir de painéis solares, muito cara e pouco
eficiente. A energia solar mais eficiente é a termo solar concentrada (Concentrated
Solar Power). Os EUA têm aumentado muito o investimento neste tipo de
geração e a Alemanha planeja investir no mesmo sentido em países que tenham
potencial, como os do norte da África. O custo de um kilowatt/hora deste tipo
de energia gira hoje na casa dos R$ 0,48, mas pode ser reduzido para a metade
disso em dez anos com os investimentos iminentes. Ainda é muito quando
comparado ao custo da energia hidrelétrica, mas não é nenhum absurdo quando se
considera o potencial de redução de impactos ambientais.
É
lamentável ver uma das raras iniciativas em prol do meio ambiente vinda de
artistas formadores de opinião sendo bombardeada por uma matéria de capa
tendenciosa em uma das revistas de maior circulação no país, com base em
omissões e manipulação de dados. Só é possível ter acesso à informação de
qualidade consultando veículos de imprensa alternativos. A Internet ajuda
muito. Graças a ela podemos desmontar farsas como a da Veja e ver que o nocaute
não passa de golpe baixo.
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