por
Rafael Marcondes, Luciano Moreira Lima & Guilherme Garbino
Recentemente
foi amplamente noticiado a morte em massa de animais silvestres
afogados devido ao enchimento da represa da Usina Hidrelétrica de Santo
Antônio, que está sendo construída no Rio Madeira, próximo à cidade de Porto
Velho – RO. De acordo com uma pessoa que trabalhou nas atividades de
resgate de fauna durante o enchimento do lago da usina, o resgate foi ineficaz
e houve um verdadeiro extermínio de animais na região. Antas, tatus, pacas,
cotias e diversos outros bichos se afogaram, morreram e apodreceram nas águas
do Madeira. O consórcio Santo Antônio Energia, responsável pela construção da
usina respondeu que
realmente ocorreram mortes, mas elas teriam sido míseros “1,8%” do total de
animais resgatados, 25.517, e que desses, 97,7% haviam sido devolvidos
“saudáveis” a natureza.
Um dos milhões de animais afogados pelo enchimento do lago da Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, Rio Madeira, Rondônia. Fonte - aqui - |
Um
pequeno exercício matemático revela uma verdade oculta e macabra por traz são
desses números. Vamos raciocinar um pouco… Uma espécie típica de ave
passeriforme possui uma densidade populacional de 1 casal a cada 5 hectares, ou
1 indivíduo a cada 2,5 hectares (Terborgh et al. 1990). Segundo a
própria Santo Antônio Energia, a área a ser alagada é de 16.400 hectares.
Essa área comporta, portanto, cerca de 6.560 indivíduos de uma espécie típica
de pássaro. Numa estimativa, conservadora, 200 espécies de passeriformes
ocorrem na região do alto Rio Madeira. Multiplicando 6.560 por 200, chegamos a
outra estimativa, também conservadora, de mais de 1 milhão de pássaros na área
a ser inundada! Apenas de aves passeriformes! Não estamos contando as demais
aves, nem répteis, anfíbios, mamíferos, borboletas e a míriade de outros
invertebrados. Se os contássemos, facilmente a conta chegaria a bilhões de
animais. Nesse contexto, a afirmação da empresa de que teriam sido 459, ou
melhor, 459,306 para ser mais exato, os animais mortos pelo alagamento dispensa
mais comentários.
Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, Rio Madeira, Rondônia, ainda em fase de construção. Com as obras completamente concluídas mais de 16.000 hectares de florestas estarão para sempre submersos. |
Vamos
deixar um pouco de lado os infortunados que não conseguiram embarcar na Arca de
Noé e nos concentrar em analisar o destino desses quase 25 mil animais
resgatados e devolvidos “saudáveis” a natureza. Um ótimo ponto de partida para
nos enveredarmos nessa questão é um elucidativo artigo do Professor Marcos
Rodrigues, da UFMG, publicado em 2006 na revista Natureza &
Conservação. Nessa publicação o autor levanta uma série de questões sobre o
destino dos animais realocados, compartilhadas abaixo.
O
objetivo declarado dos resgates de fauna é salvar animais que de outra maneira
se afogariam. Para isso, equipes de biólogos e veterinários capturam animais,
principalmente vertebrados, durante o enchimento da represa. Os animais
capturados passam um breve período em centros de reabilitação e em seguida são
liberados em áreas que, teoricamente, possuem características semelhantes
àquelas de onde foram retirados, mas onde, obviamente, não haverá alagamento.
Embora
lógico a primeira vista, esse procedimento parece ignorar o fato que muitas das
espécies incluídas nesse bolo são territorialistas. Nesses casos, cada
indivíduo, casal ou bando, dependendo da espécie, defende uma área da floresta
(ou cerrado, caatinga, etc.), mantendo um território geralmente com fronteiras
muito bem delimitadas. As vantagens do animal manter um território estão relacionadas
principalmente com competição por recursos, incluindo alimento, abrigo e
parceiros reprodutivos. Por isso, muitas espécies defendem exaustivamente seus
territórios, não tolerando indivíduos da mesma, ou, por vezes, até de outras
espécies. Em um ecossistema em equilíbrio, geralmente a maior parte do espaço
está ocupada por territórios de uma dada espécie, imediatamente onde termina o
território de um indivíduo, já começa o de outro. Áreas “desocupadas”
geralmente não apresentam recursos necessários para aquela espécie.
O
leitor provavelmente já entendeu onde acabaremos chegando. Ora pois, os animais
resgatados são soltos em áreas onde geralmente não há territórios vagos, o que,
consequentemente, resultará em uma superpopulação local da espécie. O que
acontecerá então com esses indivíduos? As opções não são muitas e,
possivelmente, eles tentarão tomar o território de um indivíduo já
estabelecido. No entanto, as chances de sucesso são baixas, pois o
recém-chegado, além de não conhecer o novo local, provavelmente estará em
má-forma e estressado, após fugir da inundação, ser mantido em gaiolas,
transportado etc., diminuindo ainda mais suas chances.
Caso
não morra por motivos resultantes de disputas territoriais, o “invasor” poderá
tornar-se um “satélite”: indivíduos que vagam em busca de um território
desocupado. As chances de sobrevivência de um satélite, no entanto, são baixas,
pois ele tem menor acesso a recursos e constantemente tem que se envolver em
disputas com indivíduos cujos territórios ele invade. Além disso, quanto maior
o número de satélites, mais tempo os indivíduos territoriais tem que passar se
defendendo, diminuindo assim o tempo dedicado a atividades como alimentação e
reprodução. Ou seja, a introdução dos indivíduos translocados pode impactar
seriamente as populações naturais já estabelecidas
Assim,
fica claro que resgates de fauna são muito pouco efetivos frente ao número de
animais afetados no alagamento causado por uma usina hidrelétrica de grandes
proporções, ou pior, podem funcionar como um “tiro no pé”. No entanto, é uma
atividade com grande repercussão na mídia (quem nunca viu na televisão cenas de
animais sendo resgatados por helicópteros e depois saindo de gaiolas para a
“liberdade” da floresta?) e popular frente à opinião pública, que acredita que
os animais estão realmente sendo “salvos” e ignoram que outros centenas de
milhões foram, literalmente, por água abaixo ou sentenciados a vagar sem rumo
nem direção pela floresta tal qual refugiados de um verdadeiro massacre.
Problema? Nenhum… Afinal, o que os olhos não veem o coração não sente.
Post
scriptum: Reproduzo aqui um pertinente comentário sobre o texto acima
feito no FaceBook por Vitor de Queiroz Piacentini, o qual lança luz sobre
mais um grave problema associado a resgates de fauna e não abordado diretamente
no nosso texto.
O
texto tá muito bom, e poderia ir até mais longe: os resgates em rios divisores
de fauna (= espécies ou subespécies aparentadas substituindo-se em margens
opostas dos rios) simplesmente ignoram o papel biogeográfico desses rios. O
bicho-preguiça da margem direita tá há 694.750 anos sem contato com a população
da margem esquerda? Não faz mal, solta tudo no mesmo buraco! Danem-se os
padrões filogeográficos que a evolução levou anos construindo (os números do exemplo
são hipotéticos, mas sei de fonte segura que mais de 200 preguiças de uma
margem foram soltas na outra!)
O
que os olhos não veem...
Fontes:
Rodrigues,
M. 2006. Hidrelétricas, Ecologia Comportamental, Resgate de Fauna: uma
Falácia. Natureza & Conservação, vol. 4, n. 1, p. 29-38. (A maior
parte das informações, raciocínio e conclusões desse post foi adaptada deste
excelente artigo.)
Terborgh,
J. et al. 1990. Structure and organization of an Amazonian
forest bird community. Ecological Monographs, vol. 60, p. 213-238.
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