Mulher indígena no Vale do Javari |
Por Maria Emília Coelho*
Motor desligado. “Escuta! Eles estão ali pra cima”, garantiu Korak Kanamari em uma voadeira que subia o rio Itaquaí, no extremo oeste do Amazonas. O cacique sabe que os índios isolados estão por perto porque imitavam o som de uma ave amazônica para se comunicar com a gente. No barco, encontram-se alguns índios Kanamari e Marubo, a equipe da Funai, e eu. Pela manhã, nossa missão é encontrar um grupo de indígenas em isolamento que vive na Terra Indígena Vale do Javari.
Índios isolados do povo Korubo acenam para o barco. Foto: Maria Emília Coelho |
A
área de 8,5 milhões de hectares é a segunda maior terra indígena do Brasil e
abriga os povos Kanamari, Korubo, Kulina, Marubo, Matis, Mayoruna (ou Matsés) e
Tsohom-dyapá, com diferentes tempos e graus de contato com outras sociedades.
Nessa floresta também fica a maior concentração de indígenas isolados na
Amazônia, e, possivelmente, no mundo. São 14 referências de grupos confirmadas
pelo estado. Cada uma delas com uma população expressiva.
Subimos
mais um pouco o rio e lá estavam eles: um grupo isolado do povo Korubo,
conhecido pelas outras populações da região por conta das suas bordunas como
caceteiros. Os cinco índios à beira da praia, completamente nus ao nosso
modo de ver, acenam para o barco. Quem conversa com eles é Beto Marubo, pois
sua língua tem similaridades com a dos Korubo. Beto pergunta para eles onde
ficavam suas casas. Os isolados respondem que estavam com fome e que queriam
farinha.
Avançamos
mais um pouco no sentido da margem do rio. Eles pedem de novo farinha e panela,
mas não querem que encostemos o barco – não era nossa intenção. Ligamos o motor
e partimos rumo às aldeias Kanamari do Alto Itaquaí. O encontro com os isolados
durou cerca de cinco minutos, suficientes para compreender como esses índios
correm riscos hoje. Eles estavam ali, à beira de um contágio.
Alta
vulnerabilidade
Os
quase cinco mil índios que vivem hoje em contato permanente com o Estado na
Terra Indígena Vale do Javari enfrentam graves problemas de saúde. A
mortalidade infantil é extremamente elevada. Epidemias de malária são
constantes, além da alta incidência de filárias e de hepatites A, B C e Delta.
Recentemente foram registrados casos de Aids. Segundo o relatório do Centro de
Trabalho Indigenista (CTI), de dezembro de 2010 , em 11 anos ao menos 325
índios morreram na área. Em média uma morte a cada 12 dias.
Fui
contratada pelo CTI e pelo Instituto Socioambiental (ISA) como consultora da
área de comunicação para a publicação “Saúde na Terra Indígena Vale do Javari –
Diagnóstico médico-antropológico: subsídios e recomendações para uma política
de assistência”. Lançada em outubro de 2011, o documento jogou luz, mais uma
vez, para a gravidade da situação. A ideia era contribuir com a construção de
uma solução duradoura que garanta uma atenção à saúde eficiente para esses
povos.
Os índios isolados à beira do rio se comunicam com a equipe da Funai Foto: Maria Emília Coelho |
Durante
o levantamento das informações no ano passado, o indigenista Fabrício Amorim,
coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari (FPEVJ), da
Fundação Nacional do Índio (Funai), pediu que destacássemos um ponto no
diagnóstico: a fragilidade epidemiológica dos índios isolados. “Doenças como hepatites, malária, ou até uma
simples gripe podem desencadear um processo veloz de extermínio entre grupos em
isolamento”, escreveu em um relatório de 2008.
A
calamidade da saúde da população contatada do Vale do Javari incide nos povos
isolados e de recente contato. A sua condição de isolamento carrega uma
característica: a alta vulnerabilidade. “A falta de imunidade e resistência à
uma série de doenças infectocontagiosas tornam os isolados os índios mais
vulneráveis que existem hoje”, afirma o geógrafo Carlos Travassos, coordenador
geral da Coordenação Geral de Índios Isolados e Recente Contato (CGIIRC) da Funai.
Política
do Estado
A
questão não é nova. Alertas a esse respeito são motivo de diversos relatórios e
documentos produzidos pelos funcionários do governo nos últimos anos. As
iniciativas do Estado nesse sentido têm sido esporádicas e inadequadas, tornando-se
urgente uma ação para organizar e executar uma assistência de saúde permanente
aos índios que se encontram em maior risco.
No
Vale do Javari, a CGIIRC atua no estudo de localização e no monitoramento dos
grupos isolados, e na fiscalização dos seus territórios contra invasores.
Através do trabalho da equipe dos três postos de vigilância na área, a FPEVJ
realiza expedições terrestres e sobrevoos. O objetivo é garantir a integridade
física e cultural desses povos. Desde 1988, a política de proteção da Funai é o
não-contato.
O
atendimento à saúde no Javari e demais áreas indígenas do país fica hoje
sob gestão da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai). Vinculada ao Ministério da
Saúde, foi criada recentemente após inúmeros protestos do movimento indígena brasileiro
frente às irregularidades e a suspeitas de corrupção da Fundação Nacional de
Saúde (Funasa), instituição estatal responsável pelo atendimento à saúde
indígena de 1999 a outubro de 2010. Antes, a Funai assumia a função.
Na
nova Sesai não existe um setor específico, como na Funai, em que um corpo
técnico tem a atribuição de garantir a saúde dos índios isolados e de recente
contato. O tema é encaminhado dentro da Coordenação de Desenvolvimento de
Pessoas em Atuação em Contexto Intercultural, ligada ao gabinete do secretário,
e por uma funcionária, a socióloga Vera Lopes. A especialista em Saúde Pública
afirma que “nunca existiu uma proposta estruturada e diferenciada na política
de saúde brasileira para esses povos”.
Os
profissionais e técnicos da saúde hoje não estão preparados. “Alguns têm anos
de prática dentro da relação com as Frentes, porém não possuem formação e
capacitação institucional. Existe uma perspectiva, mas ainda não aconteceu”,
lamenta o coordenador da CGIIRC sobre a falta de especialistas para esse tipo
de atendimento.
Remédio
do mato x remédio do branco
Atendimento da equipe da SESAI à indígena Korubo de recente contato. Foto: Maria Emília Coelho |
“Remédio
do mato não tá curando doença de branco. Antes do contato com a Funai, Xikxu
pegava remédio do mato e curava. A gente ficava bom”, contou a líder indígena
Maya, em maio do ano passado, quando visitei a aldeia Mário Brasil do Rio Ituí,
onde vive um grupo de índios Korubo contatados em 1996 pelo Estado brasileiro.
Na
época, um grupo pequeno estava saindo da terra indígena e entrando em embates
com os ribeirinhos da região. Um conflito desequilibrado, pois a
população do entorno matou muito mais índios Korubo dos que eles conseguiram
revidar. Havia risco de massacre, e a Funai decidiu realizar o contato naquele
momento. Em 1998, um homem e dois meninos Korubo morreram ao contrair malária.
A
Funasa (agora Sesai) e a Funai estabeleceram ao longo dos anos uma
parceria na assistência a esse grupo Korubo contatado. Apesar das dificuldades,
o trabalho é considerado positivo dentro do cenário alarmante do resto do Javari.
No último inquérito sorológico, constatou-se que eles não são portadores de
hepatite. Por outro lado, a malária tem agredido muito essa população. Uma
criança de 6 seis anos teve contágio com o paludismo mais de oito vezes,
prejudicando a sua formação.
Outro
grupo de recente contato no Vale do Javari é o Tsohom-dyapá, que há cerca de 17
anos estabelece relações com alguns Kanamari do rio Jutaí. Um fragmento dessa
população vive hoje na aldeia Jarinal, junto aos Kanamari. O contato se deu sem
a participação da Funai e de não-índios, dentro de um contexto de relação entre
povos que compartilham território.
O
diagnóstico do CTI & ISA identificou a urgência de uma atenção do Estado
aos Tsohom-dyapá: o trabalho sistemático da Sesai, e a presença de fato da
Funai. Esses índios, que ainda não sabem falar português, frequentam hoje a
cidade de Eirunepé, no Amazonas. Alguns deles estão tirando documentação.
Desde
novembro do ano passado a CGIIRC contratou um chefe de serviço na cidade para
trabalhar especificamente com esse povo. O coordenador geral da
CGIIRC esteve neste ano em Eirunepé para levantar mais informações e
relatou os problemas que os Tsohom-dyapá enfrentaram logo após o contato:
“Alguns índios morreram. Outros contraíram catapora e doenças que podiam ter
sido evitadas com vacina. A equipe de saúde não chegava na aldeia. Quando
tinham problemas iam para a cidade e contraiam mais doenças. Acho que com esse
processo eles acabaram adquirindo maior imunidade e resistência”.
Risco
do contato
Ao
longo da história, o contato trouxe consequências desastrosas para as
populações indígenas e seus modos de vida, como as mortes em massa provocadas
pela contaminação por enfermidades. Muitos povos foram exterminados ao se
confrontar com os diferentes segmentos da sociedade nacional. A situação de
contato é a ponta da lança, quando ocorre o primeiro grande impacto, morrendo
normalmente a maioria dos índios.
Índios
Korubo de recente contato na aldeia Mário Brasil. Foto: Maria Emília Coelho
Índios Korubo de recente contato na aldeia Mário Brasil Foto: Maria Emília Coelho |
“Era
uma assistência de emergência e pouco efetiva. Mesmo nas situações em que a
Funai foi protagonista, o Estado não estava preparado pra fazer esse tipo de
‘intervenção’ resguardando a saúde dessa população”, conta Vera Lopes.
Um
exemplo dentro do Vale do Javari foi a experiência vivida pelos índios Matís.
Empreendido entre 1976 e 1978, o “contato oficial” provocou uma trágica
derrocada populacional. Segundo a antropóloga Barbara Arisi, consultora do
diagnóstico, “dois terços da população morreu devido à total falta de preparo e
estrutura da Funai na época”.
“Morreu
tanta gente que não tínhamos como enterrar. Foi muito triste ver nossos parentes
adoecendo de febre muito alta. Até hoje não esqueci”, conta o velho Txemã, que
viveu o processo de contato dos Matis. “Quando eu vivia dentro da mata eu não
sentia dor, não tinha doença. Éramos um povo com saúde”, lembra.
Atualmente,
a opinião de especialistas é unânime sobre os riscos de um contato: grande
depopulação e, em casos mais extremos, o fim de todo um povo. Refletindo sobre
esse histórico, como enfrentar hoje uma situação de emergência? Pois o contato
com um desses grupos em isolamento pode acontecer a qualquer momento.
Possível
contaminação
O
índio sem contato não significa que está completamente à margem do que ocorre à
sua volta. Ao contrário, o termo “isolado” adotado pelo Estado brasileiro
designa a sua condição no contexto global: segmentos e remanescentes de povos
que recusam as relações permanentes com distintos atores da nossa sociedade.
O
Vale do Javari é um complexo espaço cultural onde os diferentes povos indígenas
estabeleceram, e estabelecem, diversas relações de trocas, tensões e
sobreposições territoriais. Assim, se essas relações interétnicas existem,
também há a possibilidade destes isolados, que realizam contatos esporádicos
com índios contatados vítimas de doenças crônicas, estejam em processo de
contaminação, e adoecendo também.
Os
mais expostos a tais fatalidades são, sobretudo, os Korubo que encontramos à
beira do rio Itaquaí, e que vivem entre a confluência dos rios Coari e Branco,
aparecendo também nas margens do rio Ituí. Desde 2005, tornam-se cada vez mais
comuns os relatos de contato, troca e interação entre esses isolados e índios
contatados Matis e Kanamari, ambas populações com alto índice de malária.
Um
dos temores da Funai hoje é a transmissão e a disseminação de doenças dos índios em contato entre os
isolados. Os profissionais que frequentemente sobem e descem esses rios, já
registraram ocorrências de troca de materiais como alimentos e roupas usadas.
Em 2010, a equipe da FPEVJ tirou uma foto de uma mulher Korubo vestindo
uma camisa nas margens do Itaquaí. A roupa expõe os isolados à gripe,
tuberculose, e enfermidades de pele, como a escabiose.
“Vi
os isolados na beira do rio várias vezes, mas sempre vou embora. A gente pode
passar doenças da cidade se falarmos com eles. Se o korubo pegar malária não
escapa”, contou Raminho Kanamari, que compunha a nossa expedição. Segundo
Fabrício Amorim, a camisa provavelmente foi cedida por índios Kanamari, que já
afirmaram terem presenteados os Korubo com roupas e alimentos.
Nos
últimos anos, os Kanamari sofreram com mortes por tuberculose. “Somos
contaminados e por isso não podemos dar roupas e comida para eles. Os isolados
não têm médico e hospital como a gente. Estamos cansados de falar para os
nossos parentes não jogarem lixo na praia”, explicou Nego Kanamari, enquanto
subíamos o Itaquaí.
Uma
situaçãoo semelhante também ocorre no rio Ituí, mas desta vez envolvendo
encontros entre os isolados Korubo do Coari e os índios Matis e Marubo. O
cacique Txemã Matis acha que “eles já se contaminaram”. “Os isolados que estão
mais no mato vão viver mais porque nunca tiveram doença de branco. Farinha,
bolacha, panela, roupa, tudo isso está contaminado”.
Barco
da Sesai (antes Funasa) aportando na base da Frente de Proteção Etnoambiental
Vale do Javari. Foto: Maria Emília Coelho
Barco da Sesai (antes Funasa) aportando na base da Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari Foto: Maria Emília Coelho |
Outros
exemplos de grupos em risco são os isolados do rio Quixito, que vivem em uma
zona com presença maciça de madeireiros e altíssimo índice de malária, e os
isolados do igarapé Flecheira, que vivem perto dos Mayoruna da recente
comunidade Nova Esperança,
no rio Pardo. Assustados com as crescentes mortes ocasionadas pelas hepatites,
os Mayoruna migraram do rio Jaquirana para o Pardo, área muito próxima ao
território de ocupação dos isolados do igarapé Flecheira.
“Existe
a possibilidade de contágio sim, e nesses contatos esporádicos às beiras dos
rios os riscos aumentam. Mas estamos monitorando esses povos e aparentemente
não estão em situação epidêmica. Realizamos um trabalho de informação e
sensibilização com as populações indígenas do entorno, e há um pacto para o não
contato com o isolados”, explica Carlos Travassos.
Conflitos
e proteção
A
FPEVJ tem trabalhado para evitar os encontros entre índios sem contato e
contatados no Vale Javari. Em 2010, iniciou com os Matis o projeto Roças Antigas, cujo objetivo é
sensibilizá-los sobre a necessidade de proteção dos Korubo isolados, seus
vizinhos. O projeto pretende discutir com os Matis sobre os seus anseios de
retomar laços culturais
adormecidos reocupando antigos territórios, hoje também usado pelo grupo Korubo
isolado.
O
diagnóstico de saúde recomenda à Funai e à Sesai que se preparem para receber
os Korubo do Coari com estrutura médica e sanitária adequada, e que esse
processo seja acompanhado por linguistas e etnólogos capazes de auxiliar na
mediação entre os diferentes atores em jogo. Também indica a necessidade de uma
pesquisa sobre o motivo das relações buscadas por esse grupo isolado. Até que
ponto dizem respeito as suas necessidades e dinâmicas sociais inerentes aos
seus modos de vida?
Alguns
encontros recentes revelam conflitos históricos entre índios no Vale do
Javari. No final de 2011, uma antiga rixa, que antecede o contato da Funai,
pode ter sido a causa do confronto entre grupos contatados e isolados do povo
Korubo. Durante o confronto, onze índios Korubo da aldeia Mário Brasil ficaram
desaparecidos. Quando foram localizados, havia dois feridos. Em abril deste
ano, outro conflito com os caceteiros atemorizou os índios que vivem na região.
Desta vez, o embate foi com os Kanamari.
Despreparo
para o contato
O
Estado brasileiro ainda não possui um plano de contingência para atuar em uma
situação de emergência envolvendo grupos indígenas em isolamento voluntário.
Perguntei à Sesai e à Funai se ambas instituições estão preparadas hoje para o
contato. As duas responderam que não.
“Não
temos uma infraestrutura adequada para acessar essas regiões com equipamentos e
tecnologias necessárias. Não existe hoje especialistas da saúde para a
questão do índio isolado. Existem grandes epidemiologistas no Brasil, porém
nunca estudaram especificamente essas situações”, respondeu Travassos da Funai.
“Não temos um plano estabelecido, mas vamos fazer das tripas coração para que o
melhor seja feito, para entrar em campo e agir”, respondeu Vera Lopes da Sesai.
Desde
o ano passado, a secretaria e a CGIIRC tem trabalhado em parceria para a
formação de um Grupo de Trabalho Interministerial, formada por técnicos das
duas instituições, com o objetivo de formular as diretrizes para uma política
específica de atenção à saúde aos povos indígenas isolados e de recente
contato.
Profissionais
das áreas da saúde, antropologia e linguística também serão convidados. A
equipe multidisciplinar produzirá um documento com indicações para uma atuação
de atendimento à esses povos. Ficara incumbida também de criar uma resposta
rápida para uma situação emergencial de contato.
No
Peru, onde está a segunda maior concentração de povos indígenas isolados na
América do Sul, algo semelhante foi instituído em 2007 pelo Ministério da
Saúde. Segundo Vera Lopes, da Sesai, essa guia técnica com instruções para
casos de interação com povos em isolamento e de recente contato serve de modelo
para o governo brasileiro.
O
primeiro passo será percorrer as comunidades de grupos recém contatados para a
produção de pilotos de atuação. A partir daí se construirá uma estratégia de
abordagem da saúde para povos isolados. Pela primeira vez o Estado começa a
correr atrás de um prejuízo histórico contra suas populações indígenas,
pensando em como evitar o extermínio de índios no século XXI.
*
Maria Emília Coelho é jornalista especialista em Amazônia, documentarista, e
consultora do CTI & ISA para a publicação “Saúde na Terra Indígena Vale do
Javari – diagnóstico médico-antropológico: subsídios e recomendações para uma
política de assistência”.
Publicado originalmente na Carta Verde em 08 de agosto de 2012
Que horror a ganancia do capital!!! Assassinar nosso povo, destruir florestas! Um dia da caca, outro do cacador!
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