Viagem a
Canaã
No Pará, a caminho do
“maior projeto da história da Vale”, nossa equipe mostra a região onde tudo
“tem, mas não está tendo”: empregos, royalties e desenvolvimento
Por Marina Amaral
Marabá é a porta de entrada da Amazônia que aparece nos
cadernos de Economia dos jornais, não nos de Turismo. Essa é a primeira lição
para não se decepcionar com a paisagem do hotel, ao lado do aeroporto, em plena
rodovia Transamazônica. Entre postos de gasolina e serrarias, à margem da
estrada, meia dúzia de hotéis oferecem ar condicionado, internet e um serviço
feito por jovens simples metidos em uniformes “internacionais”, que chocam no
verão amazônico. A chuva que nos recebeu na manhã de 14 de julho, foi a última
da temporada, e tardia.
A alegria da cidade é o rio Tocantins, a orla de
restaurantes que servem tambaquis, filhotes e tucunarés imensos, cozidos ou
assados em óleo de palmeiras e ervas – e aos domingos reúne os que se esbaldam
nas praias e bancos de areia ou participam das competições de pescaria, a única
atividade que atrai turistas para lá.
A maioria dos visitantes vem em busca de negócios: a cidade
de 233 mil habitantes oferece mais de 60% de empregos no setor de serviços e
comércio que gira em torno das atividades econômicas da região: fazendas de
gado, empreiteiras e, a 150 quilômetros dali, o complexo de mineração da Vale
S/A na Província Mineral de Carajás – que exporta cerca US$ 13 bilhões anuais
do melhor minério de ferro do mundo, além de níquel, cobre, manganês.
Vista do Tocantins em Marabá (Foto: Jeremy Bigwood) |
São 110 milhões de toneladas de minério de ferro extraídas
da Floresta Nacional de Carajás por ano. Segundo propagandeia a Vale, foi com
esse metal que se ergueu mais da metade de Xangai, na China – o principal
importador de minério. E a companhia pretende dobrar a produção em quatro anos:
em junho deste ano, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis (Ibama) concedeu a licença prévia para o “maior projeto da
história da Vale”, a mina S11D, com investimento de US$ 19,4 bilhões entre
abertura de mina e obras de logística para escoar a produção.
John Lennon, recepcionista do hotel, usa a moto para ir do
trabalho à faculdade de administração, o que diz ser melhor do que usar os
ônibus precários para circular pelo complexo rodoviário assustador que funciona
como malha urbana em Marabá – uma característica de muitas cidades que
visitamos na viagem.
Entre Marabá e Novo Repartimento, também no Pará, ficam os
únicos 63 quilômetros contínuos de asfalto dos 4.226 quilômetros da
Transamazônica, que se não conseguiu “unir o Brasil”, como queriam os militares
nos anos 70 e 80, mudou para a sempre a vida dos que viviam nos povoados e
aldeias alcançados pelas escavadeiras.
Localizada no ponto da confluência de três rios – Araguaia,
Itacaúnas e Tocantins –, o complexo rodoviário de Marabá ergue-se sobre os
resquícios dos castanhais ocupados por fazendas nos anos 1950, transformando em
trabalho forçado a coleta tradicional dos ouriços da castanha-do-pará de
caboclos e índios. As pontes e os viadutos dividem os bairros que brotaram dos
sucessivos ciclos das fazendas de gado e da mineração a partir de Marabá velha,
à beira do Tocantins. No povoado, surgiam os bordéis e as vendas que abasteciam
o garimpo nos afluentes dos rios, nos grotões e nas serras.
Foram os garimpeiros que descobriram o tesouro primeiro e,
incentivados pelo governo da ditadura, retiraram com as próprias mãos 30
toneladas de ouro (número oficial – estima-se que pode ser muito mais) de Serra
Pelada. Hoje, o tesouro está nas mãos de uma mineradora canadense, no município
de Curionópolis, sinistramente batizado em homenagem ao major da ditadura que
conquistou o direito de disciplinar o formigueiro humano e colher parte da
riqueza depois de caçar e matar os últimos guerrilheiros do PCdoB no Araguaia
em 1972.
A perda do território que concentrava a maior parte da
riqueza mineral foi uma imposição que surgiu a partir do Projeto Grande Carajás
– que, nos anos 80, implantou-se definitivamente nas terras da União, ordenado
a partir do complexo mineral de exportação da Companhia Vale do Rio Doce.
Em 1987, dois anos depois de a primeira carga de minério de
ferro partir da mina escavada na Serra de Carajás pelos trilhos da Estrada de
Ferro Carajás e ser embarcada no Terminal de Ponta Madeira, em Itaqui, litoral
do Maranhão, o território da Vale na Serra de Carajás passou a se chamar
Parauapebas – hoje, o munícipio que tem o segundo maior Produto Interno Bruto
(PIB) de Pará (R$ 5,6 bilhões), atrás apenas da capital, Belém.
Os royalties de mineração não chegaram a quem lhes abriu a
porta, e hoje Marabá é a cidade mais violenta do Pará, e a terceira mais
violenta do Brasil, com 120,5 homicídios por 100 mil pessoas, quatro vezes a
taxa nacional, segundo o Mapa da Violência 2012.
A índia esquartejada
Marabá vive uma crise econômica com a baixa do mercado de
ferro-gusa. A principal indústria local, baseada no minério de ferro, oferece
poucos empregos e de baixa qualidade. O sonho de abrir uma siderúrgica, a Alpa
(Aço Laminados do Pará), para verticalizar a produção, parecia próximo a se
realizar quando, em 2010, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou a
inaugurar com grande pompa o canteiro de obras da “siderúrgica da Vale”. Em
outubro, o projeto foi definitivamente engavetado pela mineradora. Como diz o
comerciante Eliomar Freitas, que transferiu sua peixaria de Belém apostando no
crescimento da cidade: “Depois de 30 anos tirando minério, em Marabá não tem
uma fábrica de faca para o sujeito se matar”.
A cidade com nome de índia assistiu impotente ao progressivo
esquartejamento de seu território, perdendo o direito também sobre os vales em
que às pastagens griladas se uniram as doadas pelos militares para paulistas,
cariocas, mineiros, gaúchos – rodeadas por projetos estatais de colonização que
sorteavam lotes de dez alqueires a agricultores familiares que perdiam a terra
no Pará, Goiás, Bahia, Maranhão, Piauí.
Paisagem da estrada PA-150 (Foto: Jeremy Bigwood) |
À sombra das árvores centenárias, de nomes bonitos como
maçaranduba, mogno, angico e a insuperável castanheira, coroada pelo ninho do
gavião real, travou-se novamente o conflito pelas terras da União. Enquanto os
índios e os coletores de castanha e jaborandi se espremiam na mata cortada
pelos igarapés, as balas dos pistoleiros (muitos, ex-garimpeiros) derrubavam
colonos e sem-terra que se multiplicavam no rastro dos canteiros de obras da
rodovia PA-150, construída pela Vale durante a instalação do complexo de
Carajás, na virada da década de 70 para 80, e hoje uma rodovia estadual.
Ao norte, margeando o Tocantins em direção a Belém, seguindo
as linhas de transmissão de energia da Usina Hidrelétrica do Tucuruí, os
municípios ganharam nomes como Nova Ipixuna, Goianésia, Tailândia, que hoje
aparecem nas buscas do Google como endereço comercial de carvoarias e serrarias
ou como foco dos relatórios internacionais de violações de direitos humanos.
Foi a 70 quilômetros de Marabá – no Assentamento Agroextrativista de
Piranheiras do Alto, em Nova Ipixuna –, que, no ano passado, ocorreu um dos
crimes recentes de maior repercussão mundial: o assassinato de um casal de
líderes comunitários por pistoleiros contratados por grileiros vizinhos, que
queimavam carvão nos lotes dos assentados.
Ao sudoeste, no vale em que o Itacaúnas estende seu braço
para formar o Parauapebas, ficam Curionópolis e Eldorado dos Carajás. Ali, 19
troncos de castanheira queimados, formando o mapa do Brasil, lembram as vítimas
do massacre de sem-terra pela Polícia Militar de Parauapebas, ocorrido em 1996,
durante um protesto em que exigiam as terras prometidas por sucessivos e
fracassados projetos de reforma agrária – que deixaram um rastro de miséria,
desmatamento e violência, do governo militar ao governo do PT.
É nesse ponto que a PA-150 desvia para o Sul em direção ao
Eldorado real: Parauapebas e Carajás, as duas cidades que a Vale ergueu
escavando a Floresta Nacional de Carajás. É para lá que vamos, com a intenção
de descer um pouco mais ao sul para conhecer o novo projeto da Vale – este,
sediado na pequenina Canaã dos Carajás, a 70 quilômetros de Parauapebas,
prestes a completar 18 anos de idade.
De Marabá a Parauapebas, a cidade que hoje sedia o complexo
minerador, a paisagem surpreende pela desolação: essa é a região mais desmatada
do Pará. Nas pastagens quase vazias, as cabeças de boi se alternam às faixas de
plantações de palmeiras de açaí e buriti – a mesma folha que cobre as casas de
plástico preto, humanizadas pelas crianças que correm em direção ao banho no
igarapé. Há 12.068 famílias assentadas pelo Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (Incra) nos municípios de Marabá, Eldorado dos Carajás,
Curionópolis e Parauapebas e três vezes esse número esperando terra em
acampamentos, segundo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).
Acampamento do MST na estrada PA-150 (Foto: Jeremy Bigwood) |
“Tem, mas não está
tendo”
Os buracos imensos no asfalto precário exigem a atenção do
motorista, que disputa espaço com caminhões de gado, combustível, peças de
escavadeiras, tratores, sucata e carvão ou cobertos por logotipos de
supermercados e lojas de varejo que abastecem os 153 mil moradores do “Peba”,
como dizem maranhenses, piauienses, paraenses, goianos e baianos que saem de
casa cedinho uniformizados. A sensação é de que toda a população que embarca
nas vans – o único meio de transporte público coletivo – usa crachás de
empreiteiras e firmas de limpeza.
Mais do que precário, como quase tudo por ali, me conta a
“pioneira” Maria Aparecida Alves de Oliveira, 39 anos, camareira de um dos
hotéis que cobram R$ 200 de diária e que oferecem de tudo, mas onde falta tudo
também. “Tem, mas não está tendo” é a resposta singela que se ouve em toda
parte quando se tenta comprar qualquer coisa – a não ser o cigarro e a cerveja,
vendidos pelo dobro do preço nos quiosques do espaço coletivo de lazer, os
canteiros centrais da PA-150 onde o funk dos jovens (52% da população têm menos
de 29 anos) disputa espaço com a música sertaneja dos pioneiros, entre as
buzinas de caminhão.
Falta até água, apesar da abundância hídrica da região, que
se mostra aos olhos nas curvas do rio Parauapebas, o “Sebosinho”, como o chamam
hoje os que ali se divertiram na infância, silenciando ressabiados quando
passava uma onça. Mais de 87% das residências não têm saneamento básico, e a
água suja corre pelas ruas.
Cida com rio Parauapebas ao fundo (Foto: Jeremy Bigwood) |
O pior, porém, diz Cida, é a falta de ônibus – só os que
trabalham para a Vale embarcam nos fretados que entopem a cidade na troca de
turnos. Os outros dependem das tais vans, liberadas sem maiores exigências pela
prefeitura, de acordo com a TV Parauapebas, que comenta um caso ruidoso,
ocorrido três dias antes de nossa chegada: mototaxistas que protestavam pela
morte de um colega atropelado por uma van botaram fogo nos canteiros e nas
latas de lixo, provocando um tumulto em que obtiveram o apoio da população.
“Eles tratam que nem bicho, xingam de cachorra quando a
gente, quase sem respirar já, diz que não tem espaço pra mais um, e ainda
dirigem que nem uns loucos”, conta.
E olha que Cida não é mulher de se assustar fácil. Aos sete
anos veio com a mãe e os irmãos do interior de Goiás em busca do pai
garimpeiro. Ele andava por um grotão em Curionópolis, que ainda se chamava
Garimpo dos 30. Com nove anos, foi estudar em Rio Verde, a vila que se tornaria
Parauapebas conforme crescia entre peões de obra da Estrada de Ferro Carajás e
os garimpeiros que queriam viver com a família – na Serra Pelada não entrava
mulher, o bordel ficava um quilômetro acima.
Enquanto o “Peba” era ordenado em lotes urbanizados pela
Vale para apaziguar a bagunça dos peões, e o núcleo residencial de Carajás se
instalava no alto da serra para abrigar técnicos e engenheiros que vinham de
fora, Cida engravidou, aos 13 anos, do primeiro dos cinco filhos: hoje rapazes
que trabalham em empreiteiras e moças que fazem faxina nas “terceirizadas”, com
exceção da mais nova que passou no “treininho da Vale”, ela diz – o programa de
Formação de Mão de Obra que a empresa toca junto com o Serviço Nacional de
Aprendizagem Industrial (Senai), primeira etapa para conquistar a cobiçada
“camisa verde-mata” da empresa, que garante carteira assinada e participação
nos lucros aos que cumprem as metas. A cor verde foi adotada em 2010 em
substituição à tradicional “marrom-minério”.
“Ela agora está mais perto de ter um futuro”, Cida me diz.
“Essas obras vão e vêm, um dos meus filhos está em Belo Monte, agora, passando
aquele aperto nas confusões por lá”, comenta ela, em referência aos protestos
de trabalhadores contra o Consórcio Norte Energia, responsável pela obra, em
que a Vale tem 9% de participação.
Basta um número para explicar a alegria da Cida com o
sucesso da caçula: a Vale tem “31 mil empregados – entre próprios e terceiros
permanentes” nos estados do Pará e do Maranhão, segundo a assessoria de
imprensa da companhia. Os demais interessados em trabalhar para a Vale têm que
se ajeitar nas terceirizadas ou no crescente setor de serviços, como fez Ivo,
da lan house Matrix, depois de “cansar de lavar peneira de minério nas
terceirizadas”, ele me diz, em mais um dos dias em que a Internet “não estava
tendo”.
E por que tanta carência, prefeito?
Os royalties da mineração (Compensação Financeira pela
Exploração de Recursos Minerais – CFEM) e a cota-parte do Imposto sobre
Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS (advinda da pelotização e da
comercialização do minério) somaram 75,09% das receitas correntes do município
de Parauapebas no ano de 2010, equivalentes a R$ 505 milhões, segundo a
prefeitura. De acordo com a legislação, 65% da CFEM (que representa em média 2%
do faturamento obtido com a extração do minério) ficam no município, 23% com o
Estado, 12% com a União.
“Entre 2000 e 2010 a população cresceu 115%, e urbanizada,
porque a população rural foi para a metade, e a grande maioria é de jovens.
Optamos por investir o máximo em saúde e educação para deixar um legado. O
destino constitucional dos royalties é preparar a população para desenvolver
outros ramos de atividade e criar um tecido social capaz de superar o vazio que
virá quando essas jazidas se esgotarem”, defende-se o gaúcho Darcy Lermen, do
PT, atualmente concluindo o segundo mandato.
A previsão é que as atuais minas de minério de ferro da
Serra Norte, que são as que ficam no município de Parauapebas, parem de
produzir em 2037, segundo o relatório anual obrigatório da companhia à Comissão
Mobiliária dos Estados Unidos.
Em busca de receita para a Prefeitura, Darcy chegou a
contratar um escritório de advogados e assinar um convênio com Departamento
Nacional de Produção Mineral (DNPM) para auditar as notas da Vale. “Ela já
vinha sendo autuada pelo DNPM por descontar indevidamente o custo do transporte
dos caminhões fora de estrada, que circulam dentro da mina, uma loucura”,
exalta-se o prefeito, que foi alvo de uma carta de denúncias enviada à
presidente Dilma pelo ex-presidente da Vale, Roger Agnelli, por “desviar
recursos públicos” contratando advogados. O caso ocorreu no ano passado, pouco
antes de Agnelli ser defenestrado pelo Conselho de Administração da empresa –
atualmente presidido pela Previ, o fundo de previdência dos funcionários do
Banco do Brasil que é o acionista com mais força, hoje, na empresa privatizada.
Agnelli era considerado alinhado demais ao Bradesco, o maior sócio do bloco
“privado”, seguido pela trading japonesa Mitsui.
A Pública teve acesso a um dos processos referentes à CFEM –
uma ação de execução fiscal na Justiça Federal de Marabá –, com as notas de
infração do DNPM que corroboram a versão do prefeito. Foram ações como essas
que resultaram em uma cobrança de R$ 4 bilhões do DNPM, valor contestado pela
Vale na Justiça e que deve ser acertado em uma mesa de negociações criada a
pedido do governo federal o ano passado.
O candidato do prefeito perdeu às vésperas da eleição. Mais
do que o “não está tendo” do povo do Peba, o que o tirou da disputa foi um
episódio obscuro que ganhou repercussão nacional: a descoberta de R$ 1,1 milhão
no jatinho de um empresário da região. Depois de publicar que o dinheiro tinha
sido vinculado pela Polícia Federal ao PT, a imprensa desmentiu a notícia – e
ainda não se sabe a quem se destinava o dinheiro.
A partir de uma denúncia anônima, o flagrante foi feito no
“aeroporto de Parauapebas”, disseram os jornais do Sudeste. Mas, em
Parauapebas, não tem aeroporto. Onde tem tudo, e continua tendo, é em Carajás.
Na portaria da Floresta Nacional de Carajás
As jazidas da Vale ficam dentro da Floresta Nacional (Flona)
de Carajás. As do lado norte incidem sobre o município de Parauapebas, e as do
Sul, no município de Canaã dos Carajás. A unidade de conservação federal, com
411 mil hectares, foi criada em 1998, para garantir a renovação da concessão de
exploração da Vale depois de privatizada. Hoje é administrada em parceria com o
Instituto Chico Mendes (ICM-Bio).
Portaria da Flona Parauapebas (Foto: Jeremy Bigwood) |
A portaria fica dentro da cidade, ostentando o logo
verde-amarelo da companhia, e frequentemente é fechada por protestos – de
professores a operários. A cidade que foi criada pela Vale e vive em função da
companhia sabe que a única maneira de chamar a atenção de autoridades do
governo ou diretores da companhia é fechando o caminho que leva às minas –
assim como os moradores de outros municípios ao longo da Estrada de Ferro
Carajás costumam parar a ferrovia. Não custa lembrar: tanto a ferrovia como a
floresta são propriedades da União.
Enquanto os caminhões e carros aguardam a liberação da Vale
ou do ICM-Bio – quando o assunto é turismo –, seguem livres os ônibus fretados
que conduzem os operários e as caminhonetes usadas nas áreas de operações.
Locadas da Avis e vistas por toda a cidade, elas exibem códigos na lataria
sinalizando o trajeto que estão autorizadas a fazer para guiar a vigilância no
asfalto liso, que sobe a serra por entre a floresta.
Essa vigilância funciona como a polícia da Flona Carajás – a
Vale é a responsável pela segurança ambiental e patrimonial, de acordo com
parceria que mantém com o ICM-Bio. Os que se dirigem ao idílico núcleo
residencial, que abriga 1.300 famílias “de fora” que vieram para trabalhar nas
operações da Vale, têm que pedir autorização da companhia um dia antes da
visita.
Se o destino é o “zoológico” – o Parque Zoobotânico que
abriga animais resgatados por órgãos ambientais –, passam pela portaria do
ICM-Bio. De vez em quando são flagrados caçando um tatu que continuam a assar
na brasa como faziam nos canteiros de obras que ergueu o maior complexo de
minério de ferro do mundo em Carajás.
“As regras mudaram hoje, que falta de sorte”
A Pública entrou na floresta na caminhonete da Vale,
conduzida pela assessoria de imprensa, em visita combinada um mês antes, mas
acabou tendo o mesmo destino dos turistas – o tal “zoológico”. Depois de
visitar os animais, a equipe de reportagem foi convidada a saborear a comida do
melhor bandejão entre os três que servem comida no núcleo residencial aos que
ali trabalham – dos operários terceirizados que limpam ruas e praças impecáveis
aos que ganham a vida nos balcões das butiques e supermercados, passando pelas
áreas de suporte e tecnologia da companhia.
Depois de pagarmos a conta na fila da balança do restaurante
dos “camisas verdes” – ali só havia funcionários da Vale – e sentar em uma das
mesas de plástico branco, tivemos a confirmação de que não seria possível o
acesso à área de operações por falta de “escolta” de segurança. Nem os apelos
de ir ao menos até os mirantes das minas para fotografar foram ouvidos, o que
chegou a causar espanto no jovem maranhense que há quatro meses enverga o
uniforme dos motoristas da Avis.
“As regras mudaram hoje, ontem mesmo fui com esse carro nas
minas e não precisava de escolta, que falta de sorte”, comentou candidamente,
para o constrangimento da assessora.
Voltamos no dia seguinte, desta vez com autorização do
ICM-Bio, contatado em Parauapebas, que nos levou para conhecer a área de
operações – com exceção do interior das minas e de outras áreas de segurança
que realmente exigem escolta.
Dos mirantes sobre as cavas da Serra Norte, que chegam a 300
metros de profundidade, as escavadeiras de 80 toneladas que extraem o minério
da cratera cor de chocolate parecem de brinquedo, assim como os caminhões “fora
de estrada” que levam 400 toneladas de terra a cada viagem, trazendo o que
sobra depois de lavar e peneirar o minério – o estéril – para ser empilhado em
morros que cercam a cava.
Mina na Serra Norte de Carajás (Foto: Jeremy Bigwood) |
A área de operações da Vale ocupa atualmente cerca de 4% da
Floresta Nacional de Carajás. O ecossistema mais ameaçado em seu interior – a
canga ou savana metalófila – ocupa 5% do território. Essa vegetação brota nas
clareiras do topo dos morros, denunciando a presença de minério e, conforme se
aprofundam as pesquisas, revela-se cada vez mais importante para manter a rica
biodiversidade das serras, como explica Frederico Martins, o biólogo mineiro
que é o gestor da Flona Carajás. “Essa vegetação é única nesse ambiente
equatorial, tem características diferentes daquela de Minas Gerais, espécies
endêmicas, ainda não foi suficientemente estudada”, diz.
Fred, como é conhecido por todos, também foi nosso guia na
área do projeto S11D, o primeiro a invadir o território inexplorado da Serra
Sul da Flona e suas dezenas de cavernas, espécies endêmicas da fauna e flora e
lagoas doloniformes, reservatórios naturais de pedra que acumulam chuva e
mantêm o nível de suas águas azuis mesmo quando os igarapés secam no verão,
quando se tornam a única opção para as espécies que vivem no topo dos morros,
algumas apenas ali.
O relato dessa visita e a explicação sobre o projeto da Vale
e seu longo processo de licenciamento ambiental você acompanha aqui.
Por ora, vamos contornar a Lagoa do Violão – como aparece
nos relatórios técnicos – ou Lagoa da Dina, como é chamada pelo povo da região
em homenagem à mítica guerrilheira do Araguaia, Dinalva Teixeira, a geóloga que
diziam ser capaz de se transmutar em borboleta quando se embrenhava nas matas
fugindo do Exército. Aos 29 anos, em 1974, Dina desapareceu depois de presa
pelos militares.
O povo do Racha-Placa
Entre 1982 e 1985, o governo federal, por meio do Getat
(Grupo Executivo das Terras do Araguaia e Tocantins), assentou 1551 famílias em
projetos de colonização em torno da área de mineração. O objetivo era formar um
cinturão de produção de alimentos e reduzir os conflitos de terra na região
Bico do Papagaio – palco da Guerrilha do Araguaia durante a década de 1970.
Muitos vieram para se instalar em três centros de
Desenvolvimento Regional – os Cedere. Um deles, o Cedere II acabou se
transformando no município de Canaã dos Carajás, em 1994, hoje uma cidadezinha de
30 mil habitantes que vive seu segundo ciclo de crescimento: o primeiro ocorreu
com a implantação da Mina do Sossego, a partir de 2000, que inauguraria a
extração de cobre em Carajás pela Vale, em 2004. Entre 2000 e 2010, a população
triplicou, conforme estudo desenvolvido por Dalva Maria Vasconcellos dos
Santos, em sua dissertação de mestrado, apresentada no ano passado na
Universidade da Amazônia.
Com a chegada do projeto S11D, novas comunidades rurais
serão desalojadas, entre elas uma que, desde o governo militar, luta para
permanecer em suas terras, como revela seu sugestivo nome: o Racha-Placa, a
cerca de 80 quilômetros da cidade de Canaã.
Desde 1980, os militares sabiam que as reservas de minério
da Serra Sul – onde fica a nova mina – eram ainda maiores do que as da
explorada Serra Norte. Por isso, tentaram expulsar logo de cara os
trabalhadores rurais que moravam nos arredores, vivendo de plantar as roças e
de lidar com o gado dos fazendeiros – Canaã já foi a segunda bacia leiteira do
Estado.
No Racha Placa – ao centro, Tonhão e Manelão (Foto: Jeremy Bigwood) |
“Nessas matas tem
muita caça, castanha, manga, cupuaçu, jaca, banana, açaí, limão”, me conta
Tonhão, como é conhecido o goiano Antonio Maurício Gustavo, que, em 1979, veio
“de pé” de Xinguara, no Araguaia, em três dias de viagem. “Aí cada um cedeu um
pedacinho da terra para a gente construir uma vila, uma roça coletiva, um
pomar”, conta, acomodado sob a sombra de uma mangueira.
“Quando a gente estava roçando o terreno, chegou um
helicóptero da Vale, desceram os militares e botaram a placa: ‘É proibido o
desmatamento, a venda de madeira, a pescaria’. Aí, pensamos: se a Vale tem
pretensão nessa área, nós também temos, e chegamos primeiro. E rachamos a
placa, daí o nosso nome”, conta.
Isso foi em 1984, lembra. Os moradores acabaram fazendo um
acordo com os militares, cedendo uma área para eles abrirem a picada que iria
permitir as sondagens de minério, e levaram adiante o projeto de construir uma
vila, que chegou a reunir quase 100 famílias.
“Nós conseguimos que os missionários redentoristas de
Trindade organizassem o colégio, que era muito bom, tinha até o 2º grau (Ensino
Médio), tinha ainda o grupo escolar (fundamental I), postinho de saúde e um
comércio que atendia todo o povo dessa região com bar, lanchonete, sorveteria,
igrejas”, lembra. “Mas, há uns dez anos, o pessoal da Vale voltou e disse
assim: ‘Vocês estão em cima da maior jazida de minério de ferro do mundo, e nós
vamos abrir a mina: se Canaã é o corpo, aqui é o coração do projeto’”, conta.
A comunidade decidiu resistir – afinal, eles tinham feito
tudo em mutirão, e sabiam que nunca mais teriam uma vila, que atendia também
aos trabalhadores rurais em um raio de 50 quilômetros. Mas, uma parte das
famílias começou a fraquejar quando a Vale passou a comprar a terra dos
fazendeiros a preços absurdos – “eles pagavam 70 mil num alqueire que valia 20
mil”, dizem –, e os trabalhadores rurais ficaram sem emprego.
“Quem tinha mais terra, como eu, que tenho cinco filhos,
podia viver da roça, mas a maioria dependia dos fazendeiros para trabalhar e
acabou aceitando vender as terras para a Vale”, conta. “E eles mataram a gente
à unha.”
A condição imposta pela companhia, é que, antes de pegar o
dinheiro, demolissem as casas, desestruturando a vila para desestimular as
famílias que resistiam a permanecer na terra.
Comunidade do Racha Placa (Foto: Jeremy Bigwood) |
À nossa volta, o cenário agora é desolador. Todas as casas
que abrigavam escola e comércio foram demolidas, e os restos pairam
fantasmagóricos na paisagem tropical. “Eles chamam a gente de posseiro, mas
tudo isso aqui é terra da União, que eles ocupam também”, ressalta Tonhão.
Por isso, as 49 famílias que resistiram ao assédio da
companhia resolveram lutar. Com a ajuda do advogado da Comissão Pastoral da
Terra, conseguiram que a empresa comprasse uma área de 340 alqueires para
reassentá-los e garantisse dois anos de salário mínimo mensal de indenização
para as famílias que perderam as roças e há três anos aguardam a transferência
para a nova área.
“É isso que mata a gente, ficar vendo a vila acabar, o mato
crescer esbagaçando as casas, a muriçoca tomar conta enquanto espera mudar”,
diz Manelão, um senhor simpático de olhos puros que não sabe viver sem a enxada
na mão. “E foi uma perda para toda a região, as crianças agora têm que andar 14
quilômetros para ir a escola, o trabalhador rural não tem onde comprar o que precisa”,
lamenta. “Eles dizem que nós estamos interrompendo o progresso. Vamos ver…”
Além de negar qualquer irregularidade no processo de
aquisição de terras, a Vale argumenta que “o Projeto Ferro Carajás S11D irá
injetar na economia R$ 40 bilhões em investimentos, além de gerar mais de 30
mil empregos diretos durante a fase de implantação e aproximadamente 15 mil
empregos (diretos e indiretos) na fase de operação”.
Os números não conferem com outros fornecidos pela própria
companhia no folder de divulgação do projeto. Ali está escrito que o projeto
gerar 30 mil empregos diretos “no pico das obras” e que 2.600 postos de
trabalho serão permanentes.
Uma diferença e tanto para a pequena Canaã.
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