sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Petróleo brasileiro do pré-sal: mais uma riqueza a ser expropriada?

Imagem: Diário do Pré-Sal

 Apesar de o pré-sal, segundo a economia liberal como a que estamos prestes a adotar, representar uma oportunidade de riqueza para promover o desenvolvimento e a melhoria da vida dos brasileiros, há que se questionar, realmente, se é isso que se quer. Explorar o pré-sal é retroceder em questões e discussões que levaram décadas para serem acertadas, como as alternativas de energia limpa que substituem o petróleo e cumprem o papel de controle do aquecimento global e da intensificação das mudanças climáticas.
Por Telma Monteiro

A tabela 8 apresenta os resultados da simulação, para extrair durante 40 anos o petróleo em cenários de recursos hipotéticos de 100, 200 ou 300 bilhões de barris, respectivamente. Esta simulação simplificada, da Tabela 4, tem o objetivo de ressaltar a dimensão e significado dos recursos do pré-sal para o País. Os montantes globais podem variar de 5 a 30 trilhões de dólares e os anuais de 125 a 375 bilhões de dólares.” Nota Técnica” (grifo meu)

Desde a descoberta do Brasil temos lidado com a expropriação das nossas riquezas naturais. Isso não é nenhuma novidade. Para quem já foi a Portugal, por exemplo, e visitou os ícones da cultura portuguesa como a Biblioteca de Coimbra, pode observar as estantes e mobiliário maravilhosos feitos com madeira nobre, maioria em jacarandá, extraída das nossas florestas. Ou, ainda em Portugal, muito do ouro e pedras preciosas que cobrem obras de arte em igrejas e castelos. Muitas cidades em outros países da Europa também ostentam obras de arte, conjuntos arquitetônicos construídos com nossas riquezas roubadas, que a maioria dos brasileiros nem sequer tem conhecimento.

Até hoje, nossas riquezas, como o minério de ferro pelotizado extraído de Minas Gerais e da Amazônia, são matéria prima para fabricar aço nas grandes indústrias pelo mundo. São as commodities, sejam elas agrícolas, minerais, madeiras nobres, minério de ferro, ou petróleo, é que destroem os biomas brasileiros. Nada disso é processado pela nossa indústria e não agrega um único centavo de dólar ou real. Os produtos industrializados no exterior voltam para o Brasil depois de enriquecer as grandes empresas internacionais e criar empregos em seus países. São 519 anos de exploração. Até agora.

Continuaremos a exportar commodities como o petróleo do pré-sal, uma riqueza que agora se sabe nos coloca no mesmo patamar dos principais produtores do planeta, como a Arábia Saudita. Sei que você está surpreso ao ler isso, mas vou demonstrar, citando partes da análise feita (outubro de 2019) e assinada pelos professores Ildo Sauer[1] e Guilherme de Oliveira Estrella[2] da Universidade de São Paulo (USP).[3]

Este artigo, assinado por mim, foi embasado nas informações que constam da Nota Técnica[4] elaborada pelos professores citados do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP). A Nota Técnica avaliou o leilão dos excedentes dos campos da cessão onerosa do pré-sal realizado em dois turnos, nos dias 6 e 7 de novembro de 2019, pelo governo brasileiro.

A primeira coisa que nos perguntamos: o que é cessão onerosa?

Antes é preciso explicar da forma mais simples possível o que são excedentes dos campos da cessão onerosa do pré-sal. Quando o pré-sal foi confirmado na costa brasileira, a União[5] – que é dona de todo o petróleo descoberto em águas do mar territorial brasileiro - teve que criar um projeto de lei, PL n. 5.941/2009, (virou a Lei Ordinária nº 12.276/2010), para regulamentar o sistema de cessão onerosa, ou seja, conceder à Petrobras o direito de explorar cinco bilhões de barris de petróleo (cálculo na época) que chamaram de “petróleo equivalente”, aí incluídos óleo e gás natural[6].
Imagem: Petrobras
Só depois, em novas pesquisas, se descobriu que a área a ser explorada no pré-sal, possuía muito mais que os cinco bilhões de barris de petróleo, até então considerados na descoberta inicial. Segundo a Nota Técnica dos professores da USP, esses excedentes podem chegar a quantidades incríveis. Já se estima em mais de 100 bilhões de barris. Para se ter uma ideia do que significa esse montante, todo o petróleo que é retirado do pós-sal (extração acima da camada do pré-sal, mais próxima da superfície) está numa reserva de 13 bilhões de barris. 

O que são, então, excedentes da cessão onerosa?

Pois bem, a Lei Ordinária (LO) só regulamentou a exploração pela Petrobras daqueles 5 bilhões de barris da tal cessão onerosa. Então, para explorar os excedentes, ou seja, as outras áreas pesquisadas depois, além daquela destinada à cessão onerosa e que descobriu-se ser um enorme potencial, teriam que ser exploradas de outra forma.  O governo, então, resolveu adotar um sistema de partilha ou concessão, na forma de licitação, para outras empresas nacionais ou estrangeiras. Abrindo mão da soberania sobre essa imensa riqueza que pode chegar às cifras de 1,2 a 1,6 trilhão de reais. Então, o governo brasileiro decidiu realizar o leilão em duas etapas, nos dias de 6 e 7 de novembro de 2019, transferindo os excedentes para empresas privadas.

Esclarecido isso, podemos entrar na seara que interessa ao povo brasileiro: o leilão dos excedentes da cessão onerosa. Na verdade, sem ter a dimensão exata do quantitativo de barris de petróleo a ser explorado pelas empresas que ganhassem o leilão.

O leilão e o ataque à soberania, ao interesse público e às futuras gerações

Conforme a nota dos professores Ildo Sauer e equipe, esse leilão teria como carimbo um ataque à soberania nacional, pois o Brasil estaria leiloando no escuro reservas para serem exploradas pelos ganhadores num período de mais de três décadas, segundo o edital, sem saber exatamente a extensão da riqueza envolvida.

A União não poderia exercer nenhum controle sobre “a redução ou aumento do volume de produção de petróleo, segundo as necessidades de acordos geopolíticos visando a manutenção dos preços do petróleo no mercado internacional, em patamar compatível com a maximização dos benefícios para a Nação”.[7]

Traduzindo, o controle do volume de petróleo a ser extraído ou não, e o controle dos preços internacionais ficariam nas mãos das grandes empresas do cartel da OPEP+ que poderia manipular o mercado mundial conforme as conveniências dos países membros. Ter o controle de reservas de petróleo de tamanha dimensão poderia ser o objetivo. E assim foi, e a Nota Técnica explica como.

Há que se mencionar também, a falta de visão de governos passados de fazer uma real pesquisa da verdadeira dimensão dos excedentes do pré-sal. E criar uma regulamentação para preservar o Brasil da possibilidade que agora se apresenta: nas mãos desse governo de extrema direita, com um viés amplamente autoritário e um projeto econômico liberal. Onde tudo é privatizado. 
 
Imagem: Diário do Pré-Sal
Para que a exploração desses excedentes tenha como base o interesse público, uma vez que foi a Petrobras que investiu na tecnologia para descoberta desse petróleo, ela deve ter a prioridade do contrato para sua exploração, na forma de prestação de serviços. Fica evidente que de acordo com os termos do edital do leilão, não havia como a União manter um controle efetivo sobre o “ritmo de produção do petróleo”. Esse controle é essencial para futuros acordos de exportação e de regulamentação para promover os interesses do Brasil diante da OPEP+ (14 países membros da OPEP mais Rússia, México e Cazaquistão).

Todo os excedentes de extração sem o controle da União torna injusta a distribuição da riqueza oriunda dos recursos que pertencem, por direito, às futuras gerações. Se o leilão tivesse êxito, governos futuros não poderiam alterar essa forma de exploração dos excedentes da cessão onerosa do pré-sal.
“A dívida social com a população brasileira, titular segundo a constituição dos recursos do petróleo, em termos de investimentos em saúde e educação públicas, em infraestrutura urbana e produtiva, em proteção ambiental, em ciência e tecnologia e na transição energética para fontes renováveis, somente será resgatada se estes recursos forem desenvolvidos de forma a maximizar o retorno para o interesse público.”[8]

A OPEP+, os preços, o cartel e o fracasso do leilão

Se o leilão tivesse sido um sucesso, o Brasil, mesmo assim, estaria vulnerável às pressões da organização dos países exportadores de petróleo, a OPEP+ (Argélia, Angola, Equador, Irã, Iraque, Kuwait, Líbia, Nigéria, Catar, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Venezuela e o + Rússia, México e Cazaquistão). Ao vender sua soberania, deixaria de exercer o direito ao enfrentamento numa possível guerra de preços.

O fracasso do leilão, com a OPEP+ fora, com exceção do Catar, bem como a ausência de 11 das 14 interessadas (menos duas empresas chinesas e a Petrobras) deixou os excedentes da cessão onerosa lá no fundo do pré-sal, ainda pertencentes à União. Mas, isso não quer dizer que não possa haver um novo edital, reformulado, que torne atrativa a exploração dessa riqueza de todos os brasileiros.
É importante, também, especular os motivos que podem explicar o fracasso do mega-leilão. Listei abaixo algumas considerações:

1.      Analistas internacionais já sinalizaram que o preço do petróleo deve despencar de $62 o barril para $45 o barril[9]. Isso pode mostrar a preocupação da OPEP+ com um possível êxito do leilão brasileiro. Inundar o mercado mundial com petróleo extraído de países fora do cartel agravaria o cenário já previsto e aceleraria a queda dos preços no mercado internacional. Esse pode ser um dos principais motivos que levou ao fracasso do leilão do pré-sal brasileiro.

É preciso lembrar que à OPEP+ interessa manter o preço do petróleo elevado e controlar a produção para beneficiar seus países. Aos países importadores, por outro lado, interessa a queda dos preços com o aumento da oferta. O Brasil do pré-sal estaria entre dois fogos e poderia ser um elemento desestabilizador. Ainda mais se considerarmos que a descoberta da província geológica do pré-sal foi o fato mais importante da indústria do petróleo, na atualidade, segundo a Nota Técnica.

2.      Outro dado importante que também pode explicar esse fracasso é a estratégia da OPEP+ que, em não havendo compradores de porte para a exploração do pré-sal brasileiro, todo esse petróleo permaneceria intacto, pelo menos por enquanto, salvo fato extraordinário que exigisse lançar mão dele no futuro. O petróleo do pré-sal brasileiro não representa, estando lá embaixo, um risco de super oferta no mercado.

3.      Mais um ponto pode nos ajudar a entender esse jogo de xadrez internacional. Há, claramente, uma desconfiança brutal com relação ao atual governo brasileiro, à estabilidade econômica e política, e aos recentes problemas de vazamento de óleo, ainda não explicados na costa do Nordeste. Sanções ambientais de fóruns internacionais têm se mostrado um empecilho para grandes empresas poluidoras como as petrolíferas.

4.      Os vencedores do leilão teriam que pagar um alto “pedágio” antecipado para o governo brasileiro. Lógico que seria infinitamente menor, caso a União mantivesse sua soberania na exploração desse petróleo. As candidatas eram 14 empresas de 11 países, a saber: 1 – BP Energy do Brasil Ltda. (Inglaterra); 2 – Chevron Brasil Óleo e Gás Ltda. (EUA); 3 – CNODC Brasil Petróleo e Gás Ltda. (China); 4 – CNOOC Petroleum Brasil Ltda. (China); 5 – Ecopetrol Óleo e Gás do Brasil Ltda. (Colômbia); 6 – Equinor Brasil Energia Ltda. (Noruega); 7 – ExxonMobil Exploração Brasil Ltda. (EUA); 8 – Petrogal Brasil S.A. (Portugal); 9 – Petrobras (Brasil); 10 – Petronas Petróleo Brasil Ltda. (Malásia); 11 – QPI Brasil Petróleo Ltda. (Catar); 12 – Shell Brasil Petróleo Ltda. (Inglaterra); 13 – Total E&P do Brasil Ltda. (França); 14 – Wintershall DEA do Brasil Exploração e Produção Ltda. (Alemanha).

5.      A explicação para a não participação dessas petrolíferas, à exceção das duas chinesas e da Petrobras, pode ser uma incógnita. Mas, convenhamos que investir um adiantamento de bilhões de dólares para o governo brasileiro, mais o custo da extração, pode ter pesado na decisão; considere-se ainda todas as colocações anteriores, principalmente o anúncio da esperada queda do preço do barril de petróleo com o aumento da oferta. O povo brasileiro e o planeta agradecem.

Esse fracasso histórico do leilão do pré-sal brasileiro pode ter salvado o Brasil de entregar, mais uma vez, suas riquezas aos interesses internacionais e evitado que mais energia suja contribua para o aquecimento global.

As energias limpas e o petróleo – o outro lado da moeda

Apesar de o pré-sal, segundo a economia liberal como a que estamos prestes a adotar, representar uma oportunidade de riqueza para promover o desenvolvimento e a melhoria da vida dos brasileiros, há que se questionar, realmente, se é isso que se quer. Explorar o pré-sal é retroceder em questões e discussões que levaram décadas para serem acertadas, como as alternativas de energia limpa que substituem o petróleo e cumprem o papel de controle do aquecimento global e da intensificação das mudanças climáticas.

Estamos no momento numa verdadeira guerra mundial para redução das emissões de gazes de efeito estufa (GEE) na atmosfera, para cumprir o Acordo de Paris[10]. O mundo clama por uma revisão dos hábitos de consumo e da diminuição dos usos dos combustíveis fósseis e sua substituição por energias limpas, e adoção de infraestrutura voltada para o transporte de massa. As mudanças no clima já estão criando milhões de refugiados climáticos no mundo e nos deparamos, agora, com um paradigma que colocaria o Brasil, com a exploração do pré-sal segundo a visão liberal, na iminência de transformar uma sociedade miserável em uma sociedade rica, revertendo as mazelas que a população enfrenta. Mas, a que custo? Ou como ter certeza que um governo de extrema direita saberia administrar tanta riqueza? Ou se consideraria a capacidade de suporte do planeta? Ou se relegasse ao esquecimento a adoção de energias limpas? Que segurança teria a sociedade?

O outro lado da questão é saber o que realmente queremos: manter a soberania do Brasil de dispor da riqueza imensurável que se nos apresenta ou abrir mão dela sem pensar que as próximas gerações poderão sentir que foram prejudicadas, usurpadas do seu direito de desfrutar daquilo que a riqueza de um país pode proporcionar. Teríamos esse direito?  Essa é a visão da economia liberal proposta pelo governo atual. Ou elas, as futuras gerações, estariam gratas por termos tomado a decisão de preservar o planeta, tornar o ar respirável, optar pelo consumo consciente, promovendo a estabilidade do clima, relegando para segundo plano as riquezas e as conquistas consumistas que levariam o planeta à degradação. O desafio maior de superar os erros do passado para salvar o planeta da extinção. Essa seria a forma de ganhar a guerra pela preservação da raça humana, vamos dizer, mais humanizada.

Priorizar a economia baseada na exploração e uso do petróleo e seus derivados, ainda mais nessa escala, seria como retroceder ao século XIX. Deixaríamos de levar em conta todas as etapas de desenvolvimento calcado em tecnologias de energia limpa alcançadas ao longo das últimas décadas, para onde estão indo os países mais avançados do mundo.

O que pensam os professores que elaboraram a Nota Técnica

A nota técnica dos professores da USP, no entanto, faz uma apologia da importância do desenvolvimento e enriquecimento do Brasil alavancados pela exploração do pré-sal brasileiro, mas pela Petrobras, para não perder a soberania. Apesar de se tratar de uma importante descoberta, no entanto, há que se ponderar sobre a realidade dos riscos implicados para o meio ambiente e a saúde do mar que banha a costa brasileira e sua biodiversidade. Haja vista, que até hoje não se tem respostas plausíveis para as manchas de óleo que estão poluindo o litoral do Nordeste desde o final de julho deste ano. Se explorarmos o pré-sal quais seriam as chances de termos mais desastres desse tipo?

Para os professores seria a grande oportunidade para a sociedade brasileira se desenvolver e atingir um outro patamar, o da igualdade, com a erradicação da miséria, disponibilização de saneamento básico, saúde e educação. Resgatar a autoestima de um povo que sofre as agruras que o condena ao anonimato na sua desimportância.

O texto da Nota Técnica coloca para discussão os benefícios dessa oportunidade histórica única, a riqueza contida na exploração do pré-sal, que pertence ao povo brasileiro. Assim sendo, é preciso impedir que isso beneficie empresas estrangeiras e seus países desenvolvidos que precisam comprar créditos de carbono e “esverdear” suas emissões de gases de efeito estufa. Seríamos mais uma vez usurpados e explorados.

O governo liberal “passa ao largo” dessas questões, desconsiderando a sociedade como um todo e esquecendo que o pré-sal é do povo brasileiro.


[1] ILDO LUÍS SAUER
Professor Titular de Energia do Instituto de Energia e Ambiente da USP
Ex-diretor de Gás e Energia da Petrobras (2003-2007), responsável pela formulação da reorientação estratégica da Petrobras, para dar ênfase à exploração e produção, promover inserção do gás natural na matriz energética como início da transição energética e investir no desenvolvimento de fontes renováveis de energia.

[2] GUILHERME DE OLIVEIRA ESTRELLA
Geólogo, ex-superintendente do CENPES
Ex-diretor de Exploração e Produção da Petrobras (2003-2011), responsável pela condução dos trabalhos que culminaram com a descoberta dos recursos do pré-sal em 2006.

[3] Fica registrado o agradecimento ao Dr. Alcântaro Lemes Rodrigues e à Dra. Larissa
Araújo Rodrigues, pela contribuição na elaboração deste trabalho.

[5] União é o país, Brasil, e não os governos eleitos.

[7] Extraído da Nota Técnica
[8] Extraído da Nota Técnica
[10] Na 21ª Conferência das Partes (COP21) da UNFCCC, em Paris, foi adotado um novo acordo com o objetivo central de fortalecer a resposta global à ameaça da mudança do clima e de reforçar a capacidade dos países para lidar com os impactos decorrentes dessas mudanças. 

O Acordo de Paris foi aprovado pelos 195 países Parte da UNFCCC para reduzir emissões de gases de efeito estufa (GEE) no contexto do desenvolvimento sustentável. O compromisso ocorre no sentido de manter o aumento da temperatura média global em bem menos de 2°C acima dos níveis pré-industriais e de envidar esforços para limitar o aumento da temperatura a 1,5°C acima dos níveis pré-industriais.

O Brasil se comprometeu a aumentar a participação de bioenergia sustentável na sua matriz energética para aproximadamente 18% até 2030, restaurar e reflorestar 12 milhões de hectares de florestas, bem como alcançar uma participação estimada de 45% de energias renováveis na composição da matriz energética em 2030.  https://www.mma.gov.br/clima/convencao-das-nacoes-unidas/acordo-de-paris

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Belo Monte: vazão do rio Xingu não dá para operar as turbinas

Imagem: André Villas Boas - ISA

Todos sabiam que construir Belo Monte traria prejuízos inenarráveis, sociais, ambientais e financeiros. Os recursos para construir o monstro do Xingu saíram dos cofres públicos, a juros subsidiados e com carência de 10 anos. Para produzir quase nada de energia. Não dá para iluminar a Itália! 


Telma Monteiro

Há que se esclarecer mais um capítulo do drama da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu. Denúncias vieram a público, seguidas de desmentido da Norte Energia. Mas, há um relatório que confirma a situação de escassez de água para alimentar as turbinas que, segundo o presidente da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), levariam energia para 60 milhões de brasileiros. Fake!

Tive acesso a um relatório sobre modelagem matemática da qualidade da água dos reservatórios do Xingu e Intermediário da UHE Belo Monte, para os períodos de baixas vazões afluentes (pouca água que chega na região onde está o reservatório do Xingu) ao rio Xingu, realizado pela empresa EnVex Engenharia e Consultoria.

Segundo o relatório, nos anos de 2016 e 2017, o rio Xingu apresentou baixas vazões atípicas. Isso levou os responsáveis pela hidrelétrica a solicitar à Agência Nacional de Águas (ANA) e ao IBAMA uma alteração na vazão do Reservatório do Xingu para o Reservatório Intermediário. Essa alteração seria necessária para atender às questões de operação das turbinas (que geram energia) da Casa de Força Principal, no sítio Belo Monte, e manter a qualidade da água no Reservatório Intermediário que alimenta essas turbinas. Fica claro que aquilo que estava previsto pelos pesquisadores, cientistas e professores está acontecendo: a hidrelétrica de Belo Monte não vai conseguir operar todas as máquinas para gerar a energia prometida nos relatórios da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). O custo atualizado do empreendimento beira aos 40 bilhões de Reais.

Entenda o problema da escassez da vazão do rio Xingu para gerar energia

Imagine um rio. Ele tem uma barragem com 97 m de altura (a água do reservatório só pode baixar até 95,20m) que forma um grande lago (reservatório), e na margem direita tem uma saída de água que deve verter, no período de estiagem, no mínimo 700m³/s, que vamos chamar de saída 1. Do outro lado da barragem, na margem esquerda, tem uma outra saída para escoar no mínimo 300m³/s, que vamos chamar de saída 2. A saída 2 leva a água por um canal para um outro lago (reservatório), construído artificialmente, chamado de Intermediário. O reservatório Intermediário tem uma barragem para acumular água suficiente para fazer funcionar as turbinas da Casa de Força Principal que geram a energia.

Agora, imagine uma situação de grande escassez de água que flui pelo rio devido à seca, comum nessa época do ano, e que, excepcionalmente, está mais grave. A vazão do rio baixou para apenas 750m³/s que devem alimentar o reservatório do lago 1 (maior) e distribuir essa água para a saída 1 e para a saída 2. A saída 1 tem que verter 700m³/s no mínimo, obrigatoriamente, pois vai percorrer o trecho do rio que não pode ficar seco; esse foi o compromisso assumido no processo de licenciamento para obtenção da licença. Se não fosse a construção de Belo Monte, esse trecho de 62 km receberia água durante todo o ano conforme a vazão do rio.

Então, para evitar que no período de escassez de água a Volta Grande do Xingu secasse por um longo período, inventaram essa coisa chamada hidrograma de consenso. O hidrograma de consenso deve garantir o mínimo de 700m³/s para “assegurar as condições de vida a ribeirinhos e indígenas, bem como à ictiofauna, flora e demais elementos do ecossistema da Volta Grande do Xingu”.

Dito isso, agora imagine esse rio com uma barragem que impede a água de fluir livremente para o trecho que passou a ser chamado de Trecho de Vazão Reduzida (TVR), mas que por conta da construção da barragem vai receber no mínimo 700m³/s, impreterivelmente.

Nesta época, em que a escassez da vazão do rio Xingu ficou tão grave é preciso fazer a “Escolha de Sofia”, já que os 750m³/s que estão entrando no primeiro reservatório não suprem, ao mesmo tempo, o hidrograma de consenso pela saída 1 (700m³/s) e a saída 2 (300m³/s) que deveriam mover as turbinas da Casa de Força Principal e gerar a energia.

Se não houver vazão suficiente do rio para manter o reservatório Xingu e o reservatório Intermediário, como informado na carta do responsável pela Norte Energia, dirigida à Agência Nacional de Águas (ANA), é preciso dar um jeito. O hidrograma de consenso no TVR não pode ser alterado, pois afetaria a vida na Volta Grande do Xingu.

Traduzindo: nesse período crítico, ou se manteria a vazão do Reservatório do Xingu (principal) para o Reservatório Intermediário, em prejuízo do TVR, para operar as turbinas da Casa de Força Principal no sítio Belo Monte ou, então, as turbinas teriam que parar de gerar energia.

Para solucionar o problema de prejuízo no TVR, a EnVex considerou e sugeriu que poderia haver uma operação parcial das turbinas da Casa de Força Principal do sítio Belo Monte, com vazões (em pulso) variando de 50m3/s em 50 m3/s até atingir o mínimo de 300 m³/s, sem prejuízo da qualidade da água. Dessa forma seria possível acumular água no Reservatório Intermediário e ter vazão suficiente para acionar as turbinas e gerar energia duas horas por dia. Com essa medida, a vazão mínima na Volta Grande do Xingu ficaria garantida.

O pedido da Norte Energia, diante das conclusões do relatório da EnVex Engenharia e Consultoria, foi, então, no sentido de obter da ANA a autorização para reduzir a vazão do reservatório do Xingu para o reservatório Intermediário. A EnVex, então, fez várias simulações com vazões interrompidas (por pulso) para conseguir operar parcialmente as turbinas e ao mesmo tempo evitar que houvesse prejuízo de vazão para a Volta Grande do Xingu. Mesmo assim, uma hidrelétrica com o porte de Belo Monte, com todos os impactos que causou e ainda causa, em períodos de escassez extrema de água afluente, só vai funcionar duas horas por dia.

O bode na sala

Ora, propor interromper a regularidade da geração de energia de uma hidrelétrica que já custou quase R$ 40 bi, e ainda alterar a regra da vazão para “não prejudicar o TVR, as populações e a biodiversidade” me parece um conto da carochinha, em se tratando da empresa Norte Energia e desse governo atual. Não sei se a proposta do diretor da Norte Energia foi aceita pela ANA e pela ANEEL, mas, essa escolha entre fazer funcionar parcialmente as turbinas de Belo Monte ou manter a vida na Volta Grande do Xingu e seus povos, não deixa dúvidas sobre qual será a opção. É preciso ficar atento às decisões que podem impactar ainda mais a já combalida Volta Grande do Xingu, seus povos e a biodiversidade.

Mais uma vez, fica evidente que as modelagens dos estudos que serviram para conceder as licenças para construir Belo Monte, deixaram de contemplar cenários de riscos agravados pelas mudanças climáticas aceleradas ano a ano.

A Aneel ignorou o problemas e autorizou a operação da última turbina

Em meio a esse imbróglio, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) autorizou, em 19 de novembro, passado a entrada em operação da última turbina de Belo Monte. É um marco histórico porque coroa uma das maiores destruições num grande rio da Amazônia, o Xingu. A hidrelétrica marcou profundamente a sociedade, antes e durante sua construção. Assistimos povos indígenas e populações tradicionais sendo compulsoriamente removidos do seu habitat. Assistimos, impotentes, a destruição da floresta. Assistimos ao recrudescimento da violência em Altamira. Assistimos ao descumprimento das condicionantes do processo de licenciamento, pela Norte Energia, consórcio responsável pela construção e Belo Monte. Assistimos à destruição da biodiversidade da Volta Grande do Xingu, que deixou de ter a sazonalidade imprescindível para a manutenção e reprodução de espécies endêmicas, da vida das populações indígenas e ribeirinhas.

A Volta Grande do Xingu, trecho único na Amazônia, essencial para os indígenas e os ribeirinhos que dependem da biodiversidade para sua sobrevivência, pode secar definitivamente, ou receber menos água. O chamado hidrograma de consenso, mínimo de vazão necessário para manter a vida no trecho da Volta Grande, e que foi acertado com a ANA (Agência Nacional de Águas) durante o processo de licenciamento da Hidrelétrica Belo Monte, pode estar em perigo devido à escassez de chuvas na região.

A Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), em comemoração ao feito da entrada de operação da última turbina de Belo Monte, mesmo diante do dilema da escassez grave de água no rio Xingu, este ano, produziu uma matéria mentirosa, da qual faço questão de transcrever um trecho:
Durante a cerimônia, o diretor presidente da Aneel, André Pepitone, destacou que a energia gerada pela usina, vai atender cerca de 60 milhões de pessoas em todos os estados do país.

“Belo Monte vai gerar energia para atender 18 milhões de residências ou 60 milhões de brasileiros, o que equivale à população da Itália. Belo Monte sozinha atende à Itália”, disse.

Belo Monte não vai gerar energia o ano todo, como se viu acima, neste texto. A sazonalidade, apesar dos estudos dos empreendedores, está se mostrando pior do que o previsto. As mudanças do clima estão afetando os regimes de chuvas na Amazônia e seus rios. Fica clara a necessidade, diante da escassez de vazão afluente, de reduzir o fluxo do reservatório do Xingu para o reservatório Intermediário que alimenta a Casa de Força Principal de Belo Monte e suas turbinas.

Todos sabiam que construir Belo Monte traria prejuízos inenarráveis, sociais, ambientais e financeiros. Os recursos para construir o monstro do Xingu saíram dos cofres públicos, a juros subsidiados e com carência de 10 anos. Para produzir quase nada de energia.
Não dá para iluminar a Itália!

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Belo Monte é a forma de viabilizar definitivamente a mineração em terras indígenas (Atualizado)

Imagem: Regina Santos
O artigo que reproduzo abaixo foi escrito em 11 de setembro de 2012, com exclusividade para o jornal Correio da Cidadania. Foi um furo de reportagem, graças à minha pesquisa sobre mineração, na época. A sociedade, a mídia,  não sabiam, até então, que a mineradora canadense Belo Sun Mining estava iniciando o processo de licenciamento do maior projeto de extração de ouro a céu aberto de que se tem notícia no Brasil, bem ao lado das estruturas de Belo Monte, aproveitando os impactos que causariam. Impactos que se somariam e multiplicariam o desastre ambiental já em curso no rio Xingu, afetando milhares de famílias ribeirinhas, e terras indígenas.
 Agora, em 19 de outubro de 2019, a justiça mandou suspender o licenciamento do Projeto Volta Grande da mineradora de ouro Belo Sun, no rio Xingu, até que todas as condicionantes da licença sejam cumpridas. A licença de instalação foi concedida pela Secretaria do Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (SEMAS). Uma das condicionantes diz respeito à áreas compradas pela mineradora Belo Sun e que são do INCRA, destinadas à reforma agrária. Outro ponto ainda não resolvido diz respeito aos estudos do Componente Indígena que não foram aceitos pela FUNAI. (Telma Monteiro)

Telma Monteiro

A implantação do projeto da hidrelétrica Belo Monte é a forma de viabilizar definitivamente a mineração em terras indígenas (3) e em áreas que as circundam, em particular na Volta Grande, trecho de mais de 100 quilômetros que vai praticamente secar com o desvio das águas do Xingu. E é justamente nas proximidades do barramento principal, no sítio Pimental, que está sendo montado o maior projeto de exploração de ouro do Brasil, que vai aproveitar o fato de que a Volta Grande ficará seca por meses a fio com o desvio das águas do rio Xingu.

Pode-se começar essa história ainda no Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) de Belo Monte no capítulo que fala dos direitos minerários na região da Volta Grande do Xingu. Nele consta que há 18 empresas, entre elas a Companhia Vale do Rio Doce (requerimento para mineração de ouro), com requerimento para pesquisa, 7 empresas com autorização de pesquisa e uma empresa com concessão de lavra (CVRD, concessão para extração de estanho) na região onde estão construindo Belo Monte.

Eram, na época de realização dos estudos ambientais, 70 processos incidentes sobre terras indígenas que têm 773.000 hectares delimitados, dos quais 496.373 hectares são alvo de interesses para extração de minério, representando 63% do território indígena. Empresas como a Companhia Vale do Rio Doce, Samaúma Exportação e Importação Ltda., Joel de Souza Pinto, Mineração Capoeirana, Mineração Guariba e Mineração Nayara têm títulos minerários incidentes na Terra Indígena Apyterewa. Ainda tem muito mais.

Independente das regras que norteiam o setor de mineração em vigor ainda hoje no Brasil, o governo pretende autorizar a extração de minérios — ouro e diamantes, principalmente — em terras indígenas (1). Nos últimos anos houve uma seqüência de descobertas de jazidas de bauxita, caulim, manganês, ouro, cassiterita, cobre, níquel, nióbio, urânio, entre outros minerais mais nobres, em toda essa região do rio Xingu. Fica nítido quando se olha para os mapas de direitos minerários apresentados nos estudos dos projetos Belo Monte, Complexo Teles Pires e Complexo Tapajós.

Estrategistas militares defendem há décadas o domínio do Brasil sobre as jazidas e sua exploração para evitar que Terras Indígenas se tornem territórios fechados e inacessíveis, o que impediria a exploração, a exemplo do que acontece hoje com a Reserva Ianomami (2). Nas terras indígenas da região do Xingu próximas aos canteiros de obras da UHE Belo Monte estão concentrados pedidos de autorizações de pesquisa e lavra de minerais nobres, como ouro, diamante, nióbio, cobre, fósforo, fosfato.


A implantação do projeto da hidrelétrica Belo Monte é a forma de viabilizar definitivamente a mineração em terras indígenas (3) e em áreas que as circundam, em particular na Volta Grande, trecho de mais de 100 quilômetros que vai praticamente secar com o desvio das águas do Xingu. E é justamente nas proximidades do barramento principal, no sítio Pimental, que está sendo montado o maior projeto de exploração de ouro do Brasil, que vai aproveitar o fato de que a Volta Grande ficará seca por meses a fio com o desvio das águas do rio Xingu.

Há mais de dois meses está disponível na Internet o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) do projeto Volta Grande da empresa canadense Belo Sun Mining Corp., de junho de 2012. O estudo defende as vantagens de se fazer uma operação de lavra a céu aberto para beneficiamento de minério de ouro com "tecnologia e equipamentos de ponta, similares a outros projetos no estado do Pará".

Algumas pérolas podem ser encontradas no RIMA do Projeto Volta Grande como: "os Planos de Desenvolvimento do Governo Federal e do Governo do Pará, para a região do Projeto Volta Grande, apontam a necessidade de investimentos em infraestrutura, educação básica, saúde e outros aspectos que permitam melhorar os indicadores de desenvolvimento social e econômico da região, e promover a melhoria da qualidade de vida de suas populações, de forma mais igualitária e sustentável".


Funcionários da empresa canadense conhecendo território onde pretendem extrair ouro
Incrível como, além das hidrelétricas, os projetos de mineração, na visão do governo federal e do governo do Pará, também se tornaram a panacéia para solucionar todos os problemas não resolvidos de desenvolvimento social. Papel que seria obrigação do Estado, com o dinheiro dos impostos pago pelos cidadãos de bem.

Ainda, segundo o estudo apresentado pela Belo Sun Mining Corp., o investimento total no projeto de mineração de ouro da Volta Grande será de US$ 1.076.724.000,00, que pretende, como "brinde", propiciar controle e monitoramento ambiental e social e colaboração para a realização do desenvolvimento social, econômico e ambiental daquela região. A vida útil do projeto foi estimada em 12 anos de acordo com as pesquisas já efetuadas.

Não é uma maravilha?

Mas no RIMA (a reportagem teve acesso ainda ao EIA) faltaram alguns esclarecimentos: não há menção aos índígenas da região, nem ao fato de que as obras de Belo Monte facilitarão o projeto Volta Grande e nem por que a Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Pará está licenciando o empreendimento, quando deveria ser o Ibama. São 106 processos de licenciamento de mineração – ouro, bauxita, diamante, cassiterita, manganês, ferro, cobre, areia, granito – no site do Ibama, dos quais 30 são no estado do Pará. Então, por que esse licenciamento escapou da análise dos técnicos do Ibama?

Os impactos ambientais do projeto da Belo Sun Mining sobre a biodiversidade vão atingir principalmente a qualidade das águas superficiais e subterrâneas - assoreamento dos cursos d'água -, o que acrescenta à região mais um agravante para aumentar o prejuízo das comunidades indígenas da Volta Grande e do rio Bacajá, já às voltas com impactos semelhantes decorrentes das obras de Belo Monte. Sem contar o precedente que vai escancarar as portas para exploração de outras jazidas. (Ver mapa abaixo)

Os índios isolados na área do projeto da Belo Sun Mining

A presença de indígenas em isolamento voluntário na região dos rios Xingu e Bacajá está descrita desde a década de 1970 (4). Há estudos e testemunhos que comprovam sua presença nas cabeceiras do Igarapé Ipiaçava e de um grupo isolado (ou grupos isolados) na Terra Indígena (TI) Koatinemo. Testemunhos colhidos em 2008 confirmaram a presença de indígenas em isolamento voluntário. Os Asurini relataram seu encontro com isolados, depois de uma expedição de caça na cabeceira do Igarapé Ipiaçava.

O projeto Volta Grande da Belo Sun Mining Corp está em parte nas áreas de perambulação desses grupos em isolamento voluntário. O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) de Belo Monte, Componente Indígena, reconheceu a presença de indígenas em isolamento voluntário na cabeceira do córrego Igarapé Ipiaçava e na Terra Indígena Koatinemo dos Asurini (5). Em Parecer Técnico, a Funai (6) fez referência aos impactos (7) que poderiam afetar os indígenas em isolamento voluntário, observando que a ação de grileiros e invasores vai ameaçar sua integridade física e cultural.

O parecer da Funai ainda alerta para o fato de que o desvio das águas e a redução da vazão do rio Xingu no trecho da Volta Grande pode gerar efeitos em cadeia sobre a ictiofauna nas florestas marginais ou inundáveis; o movimento migratório vai criar aumento populacional na região e provocar pressão sobre os recursos naturais; essa pressão levará às invasões das terras indígenas onde perambulam os grupos de indígenas em isolamento voluntário (8).

A Funai também propôs que antes do leilão de compra de energia de Belo Monte, ocorrido em 20 de abril de 2010, o poder público deveria coordenar e articular ações para a proteção dos indígenas em isolamento voluntário. Para isso era preciso publicar uma Portaria de Restrição (9) de Uso entre as Terras Indígenas Trincheira Bacajá e Koatinemo.

Em 11 de janeiro de 2011, finalmente, a Funai conseguiu publicar a Portaria de Restrição nº 38, que estabeleceu restrição ao direito de ingresso, locomoção e permanência de pessoas estranhas aos quadros da Funai na área descrita, pelo prazo de dois (02) anos a contar de sua publicação. A área descrita na Portaria, Terra Indígena Ituna/ Itatá, está localizada nos municípios de Altamira, Senador José Porfírio e Anapu, estado do Pará, tem superfície aproximada de 137.765 hectares (ha) e perímetro aproximado de 207,2 km. (Ver mapa)


O projeto Volta Grande da Belo Sun Mining Corp. está sendo implantado no município de Senador José Porfírio, na área da Portaria nº 38 da Funai, que visou proteger os grupos de isolados. Em conversa sobre a Portaria, válida até dezembro de 2012, com um funcionário da Funai que não quis ser identificado nesta matéria, ele me disse que até o final do ano tem que escrever uma nova justificativa para sua reedição e para isso precisam de mais informações sobre o projeto Volta Grande e outros previstos na região. Ainda, segundo ele, existem depoimentos mais recentes sobre a presença dos índios isolados e a Funai está tratando a região da Portaria nº38 como prioridade. A Funai tem tido muitas dificuldades, feito muitas investidas na área e os estudos estão andando, com seis expedições realizadas no último ano, concluiu.

A Audiência Pública para "apresentar" o projeto Volta Grande da Belo Sun Mining Corp. para a sociedade está marcada para o próximo dia 13 de setembro.
Belo Sun Mining Corp.

A empresa responsável, aqui no Brasil, pelo Projeto Volta Grande é a Belo Sun Mineração Ltda., subsidiária brasileira da empresa canadense Belo Sun Mining Corporation, que pertence ao grupo Forbes & Manhattan Inc., um banco mercantil de capital privado voltado para projetos de mineração em todo o mundo.

A Belo Sun Mining Corp. foi lançada na Bolsa de Valores de Toronto, em 30 de abril de 2012, em ritmo de festa e comemoração. No seu site atualizadíssimo, a empresa não esconde suas pretensões de exploração mineral na Amazônia e que tem um portfólio de propriedades no Brasil. O foco principal da Belo Sun é explorar a mineração numa área que, afirma, é 100% de sua propriedade e que tem ouro estimado em aproximadamente 2,85 milhões de onças.

Quando se leem os diversos documentos dá para entender tanto entusiasmo e como o projeto Volta Grande se tornou a menina dos olhos da Belo Sun, pois controla os direitos de mineração e exploração de 130.541 hectares (1.305 km ²). Como isso foi possível ainda é preciso investigar, pois durante algum tempo as equipes da companhia têm atuado na Volta Grande do Xingu, sem disfarces, realizando perfurações e tocando, na Secretaria Estadual de Meio Ambiente do estado do Pará, o processo de licenciamento ambiental. O farto material fotográfico disponibilizado no site dá uma desagradável sensação de que muito poder está por trás desse bilionário negócio.


Outro projeto, Patrocínio, na região do Tapajós, também da Belo Sun Mining Corp., está sendo desenvolvido e merece um capítulo à parte.

Embora a empresa tenha informado nos estudos ambientais que se trata de explorar uma jazida próxima à superfície, em condições geológicas favoráveis, com extração a céu aberto, no site ela se refere à existência de um potencial de alta qualidade em profundidades de pelo menos 200 metros ou 300 metros abaixo da superfície. Parece que nada está sendo descartado no projeto e que a construção da barragem principal de Belo Monte, no sítio Pimental, para desviar o rio Xingu justamente no trecho da Volta Grande, vai beneficar a extração do ouro em grandes profundidades.

Outro detalhe que chamou a atenção sobre a Belo Sun Mining Corp. é que, nos documentos disponibilizados agora neste mês (setembro), a referência à companhia foi alterada. Em uma nota de 2011, o Brasil Econômico conta sobre a Belo Sun e a extração de 4 milhões de onças troy (barra de 31,1 gramas) em Altamira, no Pará, e dá o empresário Eike Batista como potencial investidor devido à ligação dele com o a região, onde explorou ouro entre 1980 e 1990.

Começa a fazer sentido. Talvez Eike Batista seja o grande investidor da Belo Sun Mining Ltda., subsidiária da Belo Sun Mining Corp.

A mineração no Brasil

Em maio de 2011, o governo divulgou o Plano Nacional de Mineração (PNM) 2030, com um objetivo mal explicado de que o setor mineral contribuiria com um Brasil sustentável. Palavras expressas na introdução feita pelo ministro de Minas e Energia, Edison Lobão.

A pretensão de apresentar uma visão de futuro calcada no desenvolvimento do setor mineral brasileiro com objetivo estratégico de sustentabilidade é, no mínimo, ofensiva. A justificativa que o PNM utiliza para antecipar a ideia de que haverá maior pressão no uso e ocupação do solo é que a demanda por bens minerais em países emergentes deverá crescer nas próximas décadas.

As áreas chamadas de Restrição Legal, que são as unidades de conservação, terras indígenas, as terras quilombolas, áreas destinadas à reforma agrária, são consideradas uma espécie de entrave à expansão da atividade mineral. Um exemplo que é citado no PMN, como um intróito para conduzir o leitor a entender a necessidade de exploração de mineral em terras de restrição legal, é o Plano de Manejo, considerado como um verdadeiro obstáculo às práticas de "atividades econômicas".

As terras indígenas também são consideradas restritivas à atividade mineral, pois impedem que mais de 25% da Amazônia Legal e 12% do território nacional sejam exploradas. O artigo 231, § 3º, da Constituição Federal de 1988 é entendido como passível de regulamentação, pois prevê que a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas se dêem após aprovação do Congresso Nacional, desde que as comunidades afetadas sejam ouvidas, assegurando-lhes participação no resultado de lavra. Como a lei não foi regulamentada, o PNM lhe atribui um quê de inconveniência para a concretização dos planos de mineração ali contidos.

Regulamentar o Artigo 231 da Constituição Federal torna-se, então, no PNM, um desafio para que no futuro se possa disciplinar a relação entre a atividade minerária e as comunidades indígenas. A articulação pressupõe uma melhoria no conhecimento geológico do Brasil para facilitar a identificação de novas jazidas e, o que é pior, a maior autonomia do Estado até para a oferta de insumos minerais para o setor agropecuário. Sem nenhum resquício de pudor, o PNM expõe o objetivo claro de obter, com a regulamentação, a permissão de "abertura de minas em terras indígenas", que "também amplia o escopo de atuação do setor (minerário) na região Norte".

Não é de se surpreender que até um papel estratégico para a conservação das florestas foi atribuído ao setor mineral, sem sequer um esclarecimento de como isso se daria em plena Amazônia. À exploração de urânio também é concedida uma colocação de arrepiar, considerada como uso preferencial de produção de energia que reduz os gases de efeito estufa. Exploração essa na Amazônia, subentende-se, e em terras indígenas e unidades de conservação!

A mineração na Amazônia passa a ser destacada como a atual fronteira da expansão mineral, encarada com verdadeiro otimismo no texto, dado o florescimento dos grandes empreendimentos já em curso desde o século XX. São citados todos os projetos cujos impactos se conhecem largamente, como a lavra de bauxita de Juruti, no Pará; a lavra de manganês da Serra do Navio (AP); de bauxita do rio Trombetas, Paragominas; de estanho de Pitinga (AM) e de Rondônia; de ferro, manganês, cobre e níquel de Carajás (PA); de caulim do Jari (AP) e da bacia do rio Capim (PA); de alumina e alumínio de Barcarena (PA); de escoamento de ferro-gusa pela ferrovia de Carajás.

Todo o plano nos leva a antever um grande e único processo de exploração mineral na Amazônia, já precedidos da destruição imposta pelos projetos hidrelétricos e hidrovias. A exploração do grande potencial mineral identificado na Amazônia, especialmente em terras indígenas, está, pelo menos no papel e no Congresso Nacional, em curso, bem pontuada nos planos do governo federal com projetos significativos para facilitar o conhecimento geológico do Brasil.

Na região amazônica, 5% da área que deverá ser estudada para aumentar o conhecimento geológico correspondem a terras indígenas e o documento estabeleceu diretrizes para mineração em áreas com restrições legais. Entre elas, o conhecimento do subsolo para tomada de decisão que se adeque aos "interessese nacionais, regionais ou locais." O que isso quer dizer, na prática, é que, apesar de a definição de acesso e uso das terras indígenas estar bem clara na Constituição de 1988, uma agenda de entendimentos vai propiciar a regulamentação em tramitação no Congresso e, assim, viabilizar a mineração em terras indígenas e quilombolas. Tudo em nome do interesse nacional.

O PNM propõe duas ações com relação às áreas com restrições legais, para aparar as arestas que travam o desenvolvimento da atividade minerária: uma é articular com órgãos de usos e ocupações do solo restritivos à atividade mineral, que seriam o meio ambiente, terras indígenas e de quilombolas, áreas para reforma agrária, sítios arqueológicos e fossilíferos, entre outros; e a outra é apoiar a aprovação de lei que regulamente o aproveitamento dos bens minerais nas terras indígenas, segundo dispõe o Artigo 231 da Constituição Federal de 1988.

O Projeto de Lei da mineração

É da competência exclusiva do Congresso Nacional "autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais", Art. 49, inciso XVI, da Constituição Federal (CF). As riquezas minerais são sempre de interesse nacional e econômico, mas, no que diz respeito à preservação dos interesses das populações indígenas, há uma grande distância.

Está tramitando no Congresso Nacional um Projeto de Lei (PL) 1610/96 que pretende regulamentar a exploração de recursos minerais em terras indígenas e que sofre uma grande pressão para que seja aprovado ainda este ano. Uma comitiva de deputados da Comissão Especial de Mineração em Terras Indígenas foi à Austrália para ver como é que fazem por lá, para que os indígenas aceitem a mineração em suas terras. Foram estudar a legislação, contratos, royalties e a regulação do sistema de exploração mineral em áreas indígenas, além-mar, para elaborar um parecer ao PL 1610.

O marco regulatório e o novo código da mineração

Em 2011, o Ministério de Minas e Energia resolveu lançar a discussão do novo Marco Legal da mineração brasileira, fez um diagnóstico onde apontou burocracia e uma certa "fraqueza" do poder concedente como as principais dificuldades que atingem o setor. Entre os objetivos propostos para o novo Marco Legal estão o fortalecimento do Estado para ter soberania sobre os recursos minerais, propiciar o maior aproveitamento das jazidas e atrair investimentos para o setor mineral. Tudo indica que os investidores já estão a postos.

Lógico que, no pacote do novo Marco Legal da mineração brasileira, o MME aproveitou para criar o Conselho Nacional de Política Mineral e a Agência Nacional de Mineração (ANM), que, provavelmente, serão preenchidos com a nomeação de pessoas em cargos de confiança. Isso já acontece, por exemplo, com a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), ligada à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), subordinada diretamente ao MME.

As propostas do governo Dilma Rousseff, para alterar o Código de Mineração, que é de 1967, e criar a Agência Nacional de Mineração, serão examinadas pelo Congresso Nacional a partir deste mês de setembro. A principal mudança no Código de Mineração será que o governo passará a leiloar o direito de exploração que, atualmente, é conferido por ordem de chegada.

Todas essas alterações previstas no setor mineral no Brasil, no entanto, não vão alterar em nada as licenças para pesquisa e exploração de novas jazidas já concedidas pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). Edison Lobão, ministro de Minas e Energia, recentemente anunciou que as autorizações novas estariam suspensas até que o novo Codigo de Mineração seja aprovado pelo Congresso. Qualquer processo em tramitação e não concluído no DNPM, portanto, ainda segundo o ministro, perderiam a validade e as jazidas seriam futuramente leiloadas de acordo com as novas normas.

Para se ter uma ideia do tamanho do filão minerário no Brasil localizado principalmente na Amazônia, são mais de 5 mil alvarás de pesquisa e 55 portarias de lavra que estão em processo de aprovação no DNPM. Lógico que a gritaria é grande por parte das mineradoras que estão na fila de espera, especialmente quando elas levam em conta que a Compensação Financeira pela Exporação de Recursos Minerais (CFEM) vai passar de 0,2% para até 6%. Mas, para o Ministério de Minas e Energia, tocado por Edison Lobão, sob a chefia de José Sarney, a aprovação do Código da Mineração aumenta ainda mais o seu poder, passando a ser so controlador direto dos leilões de concessões, como o da energia.

Essa é uma herança do governo Lula desde 2010 que Dilma Rousseff agora está tocando com celeridade.
Esse resumo sobre as tramitações que envolvem as alterações no setor de mineração serve para esclarecer o porquê de grandes empresas internacionais estarem ao mesmo tempo "atacando" as principais regiões onde estão as maiores riquezas minerais no Brasil. Uma delas é onde está sendo construída a hidrelétrica Belo Monte, na Volta Grande do Xingu; uma outra é na Província Mineral do Tapajós, justamente onde o governo planeja a construção do Complexo Hidrelétrico do Tapajós. Coincidência ou não, as empresas são canadenses e têm vários projetos para exploração de ouro nessas áreas.

Notas:
1) Governo quer mineração em áreas indígenas da Amazônia; disponível em http://www.amazonianet.org.br/index.php?system=news&news_id=652&action=read.
2) Idem acima.
3) Exploração de minérios em terras indígenas é tema polêmico , 26/09/10, disponível em: http://www.observatorioeco.com.br/index.php/exploracao-de-minerios-em-terras-indigenas-e-tema-polemico/
4) AHE Belo Monte Estudos de Impacto Ambiental (EIA) e Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), páginas 103/111/113. Componente Indígena PROCESSO IBAMA n° 02001.001848/2006-75, abril de 2009.
5) Idem, p. 103
6) UHE Belo Monte – Componente Indígena Parecer técnico nº 21/CMAM/CGPIMA-FUNAI.
7) Parte 4 – Avaliação Geral dos Impactos Socioambientais nas Populações Indígenas, p. 87.
8) “A continuidade e possível intensificação dessa ocupação por não-índios colocará em risco a integridade física dos grupos isolados, sendo necessária a interdição da área e as devidas ações de fiscalização. Em setembro de 2009 a Funai enviou outra expedição para a região com o mesmo objetivo de identificar a presença dos isolados, mas ainda não obtivemos as informações com os resultados dessa nova tentativa.” p. 86, UHE Belo Monte – Componente Indígena Parecer Técnico nº 21/CMAM/CGPIMA-FUNAI.
9) “1) Medidas ligadas ao Poder Público, a serem implementadas em diferentes etapas: a) Ações até o leilão: 3. Publicação de portaria para restrição de uso entre as Terras Indígenas Trincheira Bacajá e Koatinemo, para proteção de índios isolados”; UHE Belo Monte – Componente Indígena Parecer técnico nº 21/CMAM/CGPIMA-FUNAI, ps. 95/96.

Ferrogrão na Amazônia: estudos atualizados pela EDLP, Ministério dos Transportes e Infra S.A.

Imagem: Outras Palavras Ferrogrão na Amazônia: estudos atualizados pela EDLP, Ministério dos Transportes e Infra S.A.   Telma Monteiro, ...