segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Belo Monte: vazão do rio Xingu não dá para operar as turbinas

Imagem: André Villas Boas - ISA

Todos sabiam que construir Belo Monte traria prejuízos inenarráveis, sociais, ambientais e financeiros. Os recursos para construir o monstro do Xingu saíram dos cofres públicos, a juros subsidiados e com carência de 10 anos. Para produzir quase nada de energia. Não dá para iluminar a Itália! 


Telma Monteiro

Há que se esclarecer mais um capítulo do drama da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu. Denúncias vieram a público, seguidas de desmentido da Norte Energia. Mas, há um relatório que confirma a situação de escassez de água para alimentar as turbinas que, segundo o presidente da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), levariam energia para 60 milhões de brasileiros. Fake!

Tive acesso a um relatório sobre modelagem matemática da qualidade da água dos reservatórios do Xingu e Intermediário da UHE Belo Monte, para os períodos de baixas vazões afluentes (pouca água que chega na região onde está o reservatório do Xingu) ao rio Xingu, realizado pela empresa EnVex Engenharia e Consultoria.

Segundo o relatório, nos anos de 2016 e 2017, o rio Xingu apresentou baixas vazões atípicas. Isso levou os responsáveis pela hidrelétrica a solicitar à Agência Nacional de Águas (ANA) e ao IBAMA uma alteração na vazão do Reservatório do Xingu para o Reservatório Intermediário. Essa alteração seria necessária para atender às questões de operação das turbinas (que geram energia) da Casa de Força Principal, no sítio Belo Monte, e manter a qualidade da água no Reservatório Intermediário que alimenta essas turbinas. Fica claro que aquilo que estava previsto pelos pesquisadores, cientistas e professores está acontecendo: a hidrelétrica de Belo Monte não vai conseguir operar todas as máquinas para gerar a energia prometida nos relatórios da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). O custo atualizado do empreendimento beira aos 40 bilhões de Reais.

Entenda o problema da escassez da vazão do rio Xingu para gerar energia

Imagine um rio. Ele tem uma barragem com 97 m de altura (a água do reservatório só pode baixar até 95,20m) que forma um grande lago (reservatório), e na margem direita tem uma saída de água que deve verter, no período de estiagem, no mínimo 700m³/s, que vamos chamar de saída 1. Do outro lado da barragem, na margem esquerda, tem uma outra saída para escoar no mínimo 300m³/s, que vamos chamar de saída 2. A saída 2 leva a água por um canal para um outro lago (reservatório), construído artificialmente, chamado de Intermediário. O reservatório Intermediário tem uma barragem para acumular água suficiente para fazer funcionar as turbinas da Casa de Força Principal que geram a energia.

Agora, imagine uma situação de grande escassez de água que flui pelo rio devido à seca, comum nessa época do ano, e que, excepcionalmente, está mais grave. A vazão do rio baixou para apenas 750m³/s que devem alimentar o reservatório do lago 1 (maior) e distribuir essa água para a saída 1 e para a saída 2. A saída 1 tem que verter 700m³/s no mínimo, obrigatoriamente, pois vai percorrer o trecho do rio que não pode ficar seco; esse foi o compromisso assumido no processo de licenciamento para obtenção da licença. Se não fosse a construção de Belo Monte, esse trecho de 62 km receberia água durante todo o ano conforme a vazão do rio.

Então, para evitar que no período de escassez de água a Volta Grande do Xingu secasse por um longo período, inventaram essa coisa chamada hidrograma de consenso. O hidrograma de consenso deve garantir o mínimo de 700m³/s para “assegurar as condições de vida a ribeirinhos e indígenas, bem como à ictiofauna, flora e demais elementos do ecossistema da Volta Grande do Xingu”.

Dito isso, agora imagine esse rio com uma barragem que impede a água de fluir livremente para o trecho que passou a ser chamado de Trecho de Vazão Reduzida (TVR), mas que por conta da construção da barragem vai receber no mínimo 700m³/s, impreterivelmente.

Nesta época, em que a escassez da vazão do rio Xingu ficou tão grave é preciso fazer a “Escolha de Sofia”, já que os 750m³/s que estão entrando no primeiro reservatório não suprem, ao mesmo tempo, o hidrograma de consenso pela saída 1 (700m³/s) e a saída 2 (300m³/s) que deveriam mover as turbinas da Casa de Força Principal e gerar a energia.

Se não houver vazão suficiente do rio para manter o reservatório Xingu e o reservatório Intermediário, como informado na carta do responsável pela Norte Energia, dirigida à Agência Nacional de Águas (ANA), é preciso dar um jeito. O hidrograma de consenso no TVR não pode ser alterado, pois afetaria a vida na Volta Grande do Xingu.

Traduzindo: nesse período crítico, ou se manteria a vazão do Reservatório do Xingu (principal) para o Reservatório Intermediário, em prejuízo do TVR, para operar as turbinas da Casa de Força Principal no sítio Belo Monte ou, então, as turbinas teriam que parar de gerar energia.

Para solucionar o problema de prejuízo no TVR, a EnVex considerou e sugeriu que poderia haver uma operação parcial das turbinas da Casa de Força Principal do sítio Belo Monte, com vazões (em pulso) variando de 50m3/s em 50 m3/s até atingir o mínimo de 300 m³/s, sem prejuízo da qualidade da água. Dessa forma seria possível acumular água no Reservatório Intermediário e ter vazão suficiente para acionar as turbinas e gerar energia duas horas por dia. Com essa medida, a vazão mínima na Volta Grande do Xingu ficaria garantida.

O pedido da Norte Energia, diante das conclusões do relatório da EnVex Engenharia e Consultoria, foi, então, no sentido de obter da ANA a autorização para reduzir a vazão do reservatório do Xingu para o reservatório Intermediário. A EnVex, então, fez várias simulações com vazões interrompidas (por pulso) para conseguir operar parcialmente as turbinas e ao mesmo tempo evitar que houvesse prejuízo de vazão para a Volta Grande do Xingu. Mesmo assim, uma hidrelétrica com o porte de Belo Monte, com todos os impactos que causou e ainda causa, em períodos de escassez extrema de água afluente, só vai funcionar duas horas por dia.

O bode na sala

Ora, propor interromper a regularidade da geração de energia de uma hidrelétrica que já custou quase R$ 40 bi, e ainda alterar a regra da vazão para “não prejudicar o TVR, as populações e a biodiversidade” me parece um conto da carochinha, em se tratando da empresa Norte Energia e desse governo atual. Não sei se a proposta do diretor da Norte Energia foi aceita pela ANA e pela ANEEL, mas, essa escolha entre fazer funcionar parcialmente as turbinas de Belo Monte ou manter a vida na Volta Grande do Xingu e seus povos, não deixa dúvidas sobre qual será a opção. É preciso ficar atento às decisões que podem impactar ainda mais a já combalida Volta Grande do Xingu, seus povos e a biodiversidade.

Mais uma vez, fica evidente que as modelagens dos estudos que serviram para conceder as licenças para construir Belo Monte, deixaram de contemplar cenários de riscos agravados pelas mudanças climáticas aceleradas ano a ano.

A Aneel ignorou o problemas e autorizou a operação da última turbina

Em meio a esse imbróglio, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) autorizou, em 19 de novembro, passado a entrada em operação da última turbina de Belo Monte. É um marco histórico porque coroa uma das maiores destruições num grande rio da Amazônia, o Xingu. A hidrelétrica marcou profundamente a sociedade, antes e durante sua construção. Assistimos povos indígenas e populações tradicionais sendo compulsoriamente removidos do seu habitat. Assistimos, impotentes, a destruição da floresta. Assistimos ao recrudescimento da violência em Altamira. Assistimos ao descumprimento das condicionantes do processo de licenciamento, pela Norte Energia, consórcio responsável pela construção e Belo Monte. Assistimos à destruição da biodiversidade da Volta Grande do Xingu, que deixou de ter a sazonalidade imprescindível para a manutenção e reprodução de espécies endêmicas, da vida das populações indígenas e ribeirinhas.

A Volta Grande do Xingu, trecho único na Amazônia, essencial para os indígenas e os ribeirinhos que dependem da biodiversidade para sua sobrevivência, pode secar definitivamente, ou receber menos água. O chamado hidrograma de consenso, mínimo de vazão necessário para manter a vida no trecho da Volta Grande, e que foi acertado com a ANA (Agência Nacional de Águas) durante o processo de licenciamento da Hidrelétrica Belo Monte, pode estar em perigo devido à escassez de chuvas na região.

A Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), em comemoração ao feito da entrada de operação da última turbina de Belo Monte, mesmo diante do dilema da escassez grave de água no rio Xingu, este ano, produziu uma matéria mentirosa, da qual faço questão de transcrever um trecho:
Durante a cerimônia, o diretor presidente da Aneel, André Pepitone, destacou que a energia gerada pela usina, vai atender cerca de 60 milhões de pessoas em todos os estados do país.

“Belo Monte vai gerar energia para atender 18 milhões de residências ou 60 milhões de brasileiros, o que equivale à população da Itália. Belo Monte sozinha atende à Itália”, disse.

Belo Monte não vai gerar energia o ano todo, como se viu acima, neste texto. A sazonalidade, apesar dos estudos dos empreendedores, está se mostrando pior do que o previsto. As mudanças do clima estão afetando os regimes de chuvas na Amazônia e seus rios. Fica clara a necessidade, diante da escassez de vazão afluente, de reduzir o fluxo do reservatório do Xingu para o reservatório Intermediário que alimenta a Casa de Força Principal de Belo Monte e suas turbinas.

Todos sabiam que construir Belo Monte traria prejuízos inenarráveis, sociais, ambientais e financeiros. Os recursos para construir o monstro do Xingu saíram dos cofres públicos, a juros subsidiados e com carência de 10 anos. Para produzir quase nada de energia.
Não dá para iluminar a Itália!

Um comentário:

  1. Era obra demais e desnecessária para fazer grana. Eles já realizaram o projeto e a grana que pretendiam. Agora é só empurrar com a barriga porque em qualquer decisão que for tomada vai ser mais grana. Pública!
    O dinheiro não volta ao cofres públicos. Só sai! Eles sabem disso também para qualquer obra futura de conserto do problema.
    Era de exigir dos responsáveis uma restituição ou remediamento da situação sem pagamento! Mas esse país não é sério.

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