Excepcional artigo do meu amigo Rodolfo Salm, PhD e professor da Universidade Federal de Altamira, Pará, para o Correio da Cidadania. Recomendo a leitura para melhor entendimento do fundamentalismo que está destruindo o Brasil. Você precisa saber que o futuro pode ser pior do que imaginamos.
Ciência, religião, Fake News e cloroquina
Rodolfo Salm
14/07/2020
O Brasil está seriamente encrencado. Estamos no meio de uma
pandemia que já matou dezenas de milhares de brasileiros e segue matando uma
média de mil pessoas por dia. Enquanto isso, o país está sequestrado por uma
quadrilha de fundamentalistas de extrema-direita que não quer ou não tem ideia
de como lidar com o problema. Apesar do risco de contaminação, a coisa mais
sensata a se fazer seria ir às ruas protestar e exigir a preservação da
democracia, o cumprimento das leis e um impeachment, baseado em qualquer um dos
vários crimes de responsabilidade cometidos por Jair Bolsonaro.
Dado que seu vice foi escolhido propositalmente para
desencorajar um impeachment por ser tão indesejável aos olhos da esquerda
quanto ele, a melhor opção, se possível, seria cancelar as eleições pelo uso de
Fake News e permitir ao povo uma nova chance de escolher seu presidente em
termos mais justos.
Por que fomos tão facilmente vitimados pelas campanhas de
Fake News? Algumas notícias falsas eram risíveis, como a famosa mamadeira
erótica e o “kit gay”, inventados para fazer passar a ideia de que os governos
do PT teriam um plano maligno de sexualização das crianças visando a destruição
das famílias e a “instalação do comunismo”. Como estas ideias, das mais pueris,
como a da Terra plana, até outras como a noção de que a cloroquina, apesar das
evidências científicas em contrário, seria um remédio eficaz contra o novo
coronavírus, estão relacionadas? Acredito que tem raiz na crise de
credibilidade na ciência, em boa parte resultante de certa incapacidade ou
falta de vontade de certos cientistas de se comunicar com as pessoas comuns
adotando discursos e posturas inalcançáveis e da emergência de um novo tipo de
fundamentalismo religioso.
Quando eu era criança, lá pelos anos 70, ria-se de gente que
não acreditava que o homem viajou até a lua. De toda forma, não me lembro de
ter encontrado um desses pessoalmente e, por mais que esses tipos estejam se
tornando mais e mais comuns, ainda são excentricidades. Minha família materna é
de origem católica, e no quarto da minha avó havia um quadro de Jesus Cristo.
Na sala, uma imagem da Santa Ceia. Lembro-me de ter ido à igreja uma meia dúzia
de vezes durante toda a infância. Mas ninguém que eu conhecesse fazia uma
interpretação literal da Bíblia.
Na primeira vez que falei com um criacionista de verdade eu
já tinha meus vinte anos. Foi um amigo, no início dos anos 1990, e eu já
cursava a faculdade de biologia. Sua família tornara-se evangélica e hoje são
bolsonaristas (não por acaso). Foi quando ouvi falar pela primeira vez do
“criacionismo científico”, que de científico não tem nada, mas se vale de
falácias para tentar refutar os argumentos da biologia evolutiva. E o “elo
perdido da evolução humana”?, me perguntaram, tentando refutar a ideia de que
houve uma evolução humana. Uma bobagem, pois o registro fóssil humano é cheio de
intermediários. Só não é perfeito, nem poderia ser, dado que as formas
intermediárias tendem a ter distribuições espacial e temporalmente bem
limitadas, e a chance de fossilização (preservação em formas em rochas) é
extremamente remota para qualquer organismo.
Ainda hoje, na Faculdade de Biologia da Universidade Federal
do Pará, em Altamira, onde trabalho, cerca de 1/4 dos meus alunos acredita que
o mundo, e tudo o que há nele, foram criados magicamente no gênesis, mais ou
menos como está na Bíblia. Outros tantos (a maioria) dos nossos alunos
acreditam numa versão atenuada do criacionismo. Aceitam que a evolução de fato
aconteceu, mas ela seria a forma que Deus usou, para, ao longo de bilhões de
anos, criar a espécie humana. Sua obra prima. Numa barganha de professor
desesperado, às vezes eu tento “negociar” para que os criacionistas sensu
stricto troquem a primeira versão pela segunda. Na verdade, eu creio em uma
versão de evolucionismo mais pura sem qualquer espaço para projeto,
planejamento ou mesmo progresso previsível, como defendido pelo biólogo Stephen
Jay Gould.
Quem sabe se, aprendendo ciência, o povo brasileiro pare de
basear sua moral em um livro místico de mais de mil anos e entenda que o
aquecimento global é a maior ameaça ao futuro da humanidade, como demonstram
modelos científicos. Já vi desmatadores aqui de Altamira, no interior do Pará,
citando a Bíblia para justificar seu crime ambiental de consequências
apocalípticas: "Se vocês são tão numerosos e se os montes de Efraim têm
pouco espaço para vocês, subam, entrem na floresta e limpem o terreno para
vocês na terra dos ferezeus e dos refains" (Josué 17:15).
Está claro que o ritmo atual dos desmatamentos na Amazônia
causará prejuízo ao regime de chuvas do país, com sérios impactos econômicos e
sociais para o país. Mas a ciência é ignorada supostamente em nome do
desenvolvimento econômico. Triste fim para a natureza, o homem e, ironicamente,
para a economia também. Os próprios representantes do agronegócio brasileiro já
estão se manifestando pela demissão do ministro Ricardo Salles, preocupados com
as consequências dos atuais níveis de desmatamento, que, entre outras coisas,
destrói a imagem do Brasil junto à comunidade internacional.
Portanto, por que o governo segue nessa trajetória de devastação?
Aparentemente, o governo está mais ligado aos desmatadores bandidos e
milicianos como grileiros, garimpeiros e madeireiros do que aos grandes
capitalistas do agronegócio.
Quem sabe, com educação científica, as pessoas não caiam tão
facilmente na história de um político qualquer que os aproveitadores dos
ingênuos resolvem chamar de "escolhido por Deus", como aconteceu com
Jair Bolsonaro. Disse o bolsonarista Silas Feitosa: “Agora é o momento de
apoiar o governo incondicionalmente e, aguardar que, mais adiante, o presidente
terá os meios necessários para neutralizar seus inimigos [com um golpe de
estado?]...Deus o pôs na presidência da República, e só Ele é capaz de apeá-lo
de lá”. A fé, por definição, independe dos fatos. É por isso que por mais que surjam
evidências de envolvimento do presidente e sua família com o crime e a
corrupção, boa parte de sua base de apoio permanece. Devem imaginar que se
trata de "provações do demônio".
Esse desapego aos fatos e à ciência também explica nosso
desempenho desastroso na condução da crise do coronavírus. Tínhamos condições
de nos sair melhor que qualquer outro grande país do mundo por, estando mais
isolados em relação à China, de onde se espalhou o vírus, termos mais tempo que
qualquer outro para nos preparar. Também pelo nosso clima de fato diminuir a
velocidade de propagação do vírus e por termos um Sistema Único de Saúde
pública sem paralelo no mundo.
No entanto já estamos isolados na liderança do número de
mortes por dia pela pandemia e o nosso número de óbitos segue acima de mil por
dia. Por quê? Porque temos um povo que em grande parte acredita em mágica, em
milagre. E elegeu um presidente pior ainda que se cercou de uma horda de
bajuladores que, quando não são bandidos propriamente ditos, são “terraplanistas”,
ou ambos.
Além do uso de máscaras e de higiene pessoal, o isolamento
social, por pior que seja, é a única forma cientificamente comprovada de evitar
o vírus. No entanto, os seguidores do presidente preferem acreditar em um
remédio sem eficácia cientificamente comprovada, como a cloroquina, até pouco
tempo atrás defendida também por Donald Trump como uma panaceia para o
tratamento dos efeitos do coronavírus. Segundo um artigo publicado pelo
infectologista Kai Kupferschmid em um número recente da revista Science, a
hidroxicloriquina, “louvada por presidentes como uma cura milagrosa potencial”,
recebeu um golpe mortal recentemente, com três grandes estudos (diferentes
daquele estudo problemático publicado na revista Lancet) mostrando que a droga
não produz benefícios para: 1) pessoas expostas ao vírus; 2) sob risco de
infecção; 3) severamente doentes. Sugerem, portanto, que é hora de esquecer a
cloroquina e seguir adiante em busca de outras alternativas.
No entanto, tais evidências são desconsideradas pelos
fundamentalistas religiosos, que por sua vez nos chamam de “adoradores da
ciência”. Os fundamentalistas de direita falam da comprovação experimental da
eficácia de um tratamento como se fosse um preciosismo de cientistas, um
procedimento burocrático. É claro que, para uma doença em que mais de 90% das
pessoas se curam de uma forma ou de outra, experiências pessoais ou de
conhecidos que se curaram usando um determinado remédio são irrelevantes. Chá
de boldo também surtiria o mesmo efeito, sem os possíveis efeitos colaterais
associados à cloroquina.
Ainda assim, o presidente da República, que se declarou
recentemente infectado pelo vírus, apareceu na televisão como um garoto
propaganda da cloroquina em uma cena patética dizendo que o remédio, em menos
de 24h, o teria deixado praticamente curado. Como se ele tivesse qualquer
autoridade para receitar remédios para a população. E o Conselho Federal de
Medicina não se posiciona sobre esse comportamento antiético e abusivo do
presidente!
Pessoalmente, acho que a melhor forma de combater a
ultradireita fascista, no longo prazo, é ensinar evolução biológica,
especialmente em sua forma pura, que exclui plano divino ou qualquer noção de
superioridade ou progresso. Desafio que se mostra ainda mais urgente e
importante agora em que se definiu como novo ministro da educação um pastor
evangélico fundamentalista. Milton Ribeiro, foi vice-reitor do Mackenzie que,
além de uma universidade, comporta uma escola para crianças e jovens. Escola
que, segundo denunciou Marcelo Leite na Folha de S. Paulo em 2008, trabalha com
um livro de ciências onde consta a seguinte passagem: “Quando Deus formou a
Terra, criou primeiro o ambiente. Criou elementos não vivos, como o ar, a água
e o solo. Depois, Deus criou os seres vivos para morarem nesse ambiente”.
Isso além defender castigos físicos para as crianças (em
vídeo amplamente divulgado na internet). Não podemos voltar à Idade Média, e a
luta para isso necessariamente inclui a valorização da ciência. Como disse Richard
Dawkins sobre a ciência em uma entrevista famosa: "ela funciona, aviões
voam, carros andam, computadores computam, se você baseia a medicina na ciência
você cura pessoas, se projetar aviões baseados na ciência eles voam".
"It Works!". Não existe mágica.
Rodolfo Salm
PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia,
formou-se em Biologia pelo Instituto de Biociências da Universidade de São
Paulo. Atualmente é professor da Universidade Federal do Pará.
Rodolfo Salm
PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, formou-se em Biologia pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Atualmente é professor da Universidade Federal do Pará.
Nenhum comentário:
Postar um comentário