quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Amazônia ameaçada – ferrovia, mineração, termelétricas, gasodutos, hidrovias


Imagem: Revista Exame
Parte 2

Por Telma Monteiro

Dando continuidade ao ciclo de palestras em parceria com a Associação para os Povos Ameaçados (APA), com sedes na Suíça e na Alemanha, faço abaixo um resumo da terceira rodada, desta vez com o  o Ministério Alemão de Cooperação Econômica e Desenvolvimento (BMZ), com sede em Berlim. O BMZ está ligado à boa governança, ao respeito aos direitos humanos e à luta contra a corrupção. Agora, o “BMZ 2030”[1] estabelece novas prioridades em proteção climática, saúde e política familiar, cadeias de abastecimento sustentáveis, uso da digitalização e fortalecimento dos investimentos privados.

Quem já viu uma imagem ou desenho da Amazônia e percebeu o tamanho dela em relação o Brasil, não consegue imaginar tudo o que ela abriga. Ela é um grande mosaico de unidades de conservação, terras indígenas, bacias hidrográficas, sub-bacias, igarapés, cidades em meio à floresta, estradas de difícil acesso, hidrovias e povos indígenas, quilombolas. A Amazônia é mágica, sublime, imensa e protege tesouros incalculáveis como o conhecimento dos povos originários e a biodiversidade.

A Amazônia jamais deveria ser explorada pois, justamente por ser depositária de toda essa biodiversidade, ela é única e suscetível aos ataques predatórios da economia  e da expansão indiscriminada de lucros abusivos. É impossível imaginar como tamanha riqueza no sentido de Natureza, de vida, pode se tornar objeto de tanta ganância.

O estupro que Bolsonaro está planejando para a maior de todas as florestas tropicais do planeta é de uma insanidade única. A vida que a Amazônia guarda naquela imensidão não deveria ser tocada por mãos ávidas. A Natureza está nos dando avisos ininterruptos de que o ponto de retorno está ficando para trás e que em breve não o veremos mais. O clima está difícil agora? Imagine se não fizermos nada, agora, para salvar o planeta, salvando a Amazônia e seus rios voadores.

Em se tratando de meio ambiente não há mais espaço para tentativas e erros ou equívocos. O que estamos vivendo no Brasil de Bolsonaro é um propósito único: o de explorar as riquezas minerais da Amazônia, de viabilizar a logística de transporte do seu interior para os países mais ricos do mundo, e abastecer as necessidades de matérias primas cada vez mais prementes nas tecnologias criadas para a vida moderna.

Ferrogrão EF-170 e processos minerários

A Ferrogrão EF-170 é um projeto prioritário do governo Bolsonaro. Em tese, a ferrovia servirá para escoar e reduzir os custos de transporte da soja e do milho produzidos no norte do estado do Mato Grosso e sul do estado do Pará. O projeto indica um traçado de 933 km partindo da cidade de Sinop, MT, até o porto de Miritituba, no rio Tapajós, no Pará, acompanhando a rodovia BR-163.

A rodovia BR-163 foi concebida nos anos 1970 e é a rota principal, atualmente, para o escoamento das commodities agrícolas produzidas no estado do Mato Groso. Ao longo do seu percurso, é possível constatar o efeito “espinha de peixe” provocado pela ocupação das margens da rodovia. O projeto da Ferrogrão acompanha o traçado da BR-163 que corta ao meio o Parque Nacional do Jamanxim, e a Província Mineral do Tapajós, a maior província mineral do mundo, e causa impactos em outras importantes unidades de conservação e terras indígenas. Sem sombra de dúvida a Ferrogrão não serviria apenas para escoamento das commodities agrícolas, mas para viabilizar a exploração mineral de uma riqueza tamanha e ainda desconhecida. Um estudo da USP estimou que a Província Mineral do Tapajós pode produzir mil toneladas de ouro.

Nos documentos do governo para atrair investidores internacionais consta que as faixas de domínio da Ferrogrão e da BR-163 estão fora dos limites do Parque Nacional (PARNA) do Jamanxim. A mentira pode ser comprovada. O Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu medida liminar suspendendo o processo da ferrovia, justamente porque ela atravessa o PARNA do Jamanxim. O Ministério Público Federal (MPF) também entrou com um pedido no Tribunal de Contas da União (TCU) de suspensão do processo devido às irregularidades. O MPF cita, em especial, a falta de consulta aos povos indígenas, como determina a Convenção 169 da OIT, e que estão em 48 territórios com risco de potencial impacto produzido pela Ferrogrão.

Estudos indicam que a Ferrogrão deverá induzir a um desmatamento de 2 mil quilômetros quadrados de floresta nativa, uma área equivalente ao estado de São Paulo. A bacia hidrográfica do Tapajós tem 764.183 KM² e pode ser dividida em quatro porções: montante, 170 km desde a formação do rio Tapajós pela junção do rio Juruena e Teles Pires; intermediária, 255 km de Itaituba mais foz do rio Jamanxim; jusante, 320 km de São Luiz do Tapajós até a foz no rio Amazonas; e bacia do Jamanxim, 657 km (58.607 km²) que perfaz 1/3 da bacia do Tapajós.

Nessa imensidão é que está o Parque Nacional do Jamanxim (PARNA) com 17 milhões de hectares de áreas protegidas ou 8.598 KM². Tanto a BR 163 como o traçado da Ferrogrão atravessam o PARNA Jamanxim, unidade de conservação federal que tem restrição total. Esse é o ponto crucial que fez o STF suspender o processo da ferrovia. Para nosso espanto, dentro do PARNA Jamanxim há processos minerários de platina, ativos, numa área de 8.156 ha, da Vale, uma das maiores mineradoras do mundo.

Além do PARNA Jamanxim, mais ao sul, está outra importante e imensa unidade de conservação federal que é a Floresta Nacional (FLONA) Jamanxim com 13.017 KM², e que está totalmente dividida em processos minerários ativos. Mas, quais seriam os interesses por trás da construção da Ferrogrão? Ultimamente, o Ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, e representantes da Agência Nacional de Transportes Terrestre (ANTT) têm ido a público defender a construção da ferrovia e de interessados no projeto. A VLI Logística, subsidiária da Vale e a Hidrovias do Brasil, do Fundo Pátria estão primeiros na fila. O Fundo Pátria tem com acionistas:

• Alberta Ltd, Sua Majestade a Rainha, Alberta, Canadá

• Alberta Ltd, Alberta, Canadá

• Sheares Investments (Temasek Holdings) Amsterdã

• HBSA, FIP, SP

• BTO – Construção Civil, Grupo Semco

• BNDES, BNDESPAR, Brasília

• INTERNATIONAL FINANCE CO, Washington

Há que se mencionar também, novamente, os riscos imediatos da proposta de simplificação da concessão da Ferrogrão, planejada pelo governo com a MP 1065/2021, que estabelece um novo marco legal do transporte ferroviário. “O ponto principal do texto é a permissão da construção de novas ferrovias por meio de uma autorização simplificada, sem necessidade de licitação, à semelhança do que ocorre em setores como telecomunicações, portuário e aeroportuário.”[2]

Outro ponto que requer atenção especial é a mineração na Amazônia e a possível ligação com a construção da ferrovia. O governo federal editou o Decreto Nº 10.657, de 24 de março de 2021, que cria uma Política de Apoio ao Licenciamento Ambiental de Projetos de Investimentos para a Produção de Minerais Estratégicos - Pró-Minerais Estratégicos, e institui o Comitê Interministerial de Análise de Projetos de Minerais Estratégicos, no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República.

Resumindo, esse decreto vai dar um “jeitinho” nas tratativas ambientais para o licenciamento de minerais considerados estratégicos para o governo federal. Essa espécie de “política” Pró-Minerais Estratégicos vai permitir “ações entre órgãos públicos no sentido de priorizar os esforços governamentais para a sua implantação.”

Para o governo federal, o decreto servirá para “articulação” e “diálogo” entre as instituições e interessados, para resolver as questões ambientais. (grifos meus). Dá para entender perfeitamente que o decreto visa facilitar o licenciamento ambiental para implantação de projetos minerários em terras indígenas e unidades de conservação, às portas fechadas e com a violação dos ritos requeridos pela legislação. Para isso foi criado, inclusive, um Comitê Interministerial de Análise de Projetos de Minerais Estratégicos (CTAPME). A lista de 28 minerais[3] agora chamados de “estratégicos” para o governo Bolsonaro, conforme o Decreto 10.657, inclui Molibdênio[4] e Urânio.  Mineração precisa de ferrovias.

Eletrobras, termelétricas e gasodutos

Paralelamente, Bolsonaro fez aprovar no Congresso a lei 14.182, de 2021, de “privatização” da Eletrobras, com capitalização, ou seja, venda de ações na Bolsa de Valores. O governo brasileiro tem atualmente 60% das ações da Eletrobras e, pela nova lei deve vender as ações para ficar com 45% e o poder de veto conhecido como “Golden Share”. A lei da privatização da Eletrobras foi aprovada no Congresso Nacional em apenas 24 horas, uma “urgência” atípica que o Supremo Tribunal Federal (STF) vai julgar.

O Brasil está vivendo a maior seca dos últimos 90 anos e essa alteração do regime de chuvas fez com que os reservatórios das principais hidrelétricas chegassem a um estado crítico. A degradação da Amazônia, os impactos nos grandes rios, nas terras indígenas, na vida das populações ribeirinhas, provocados pelas grandes hidrelétricas como Belo Monte, no rio Xingu, Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, São Manoel e outras no rio Teles Pires, foram em vão. Os investimentos em geração de energia dos governos anteriores priorizaram a exploração dos rios amazônicos, em detrimento das energias limpas.  Agora, a Natureza está dando o seu recado com o agravamento das mudanças climáticas. A seca no sudeste do Brasil, incêndios florestais e o desequilíbrio agravado pelos grandes empreendimentos hidrelétricos afetaram duramente a biodiversidade da Amazônia, e induziram o desmatamento e o garimpo em terras indígenas.  Os impactos provocados na Amazônia, pelas grandes hidrelétricas, o desmatamento, o garimpo e a ocupação estão provocando a diminuição da vazão dos rios e afetando a geração de energia elétrica.

O atual Ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, conduziu a privatização da Eletrobras e o Congresso conseguiu apensar os chamados “jabutis” ou trechos adicionados que extrapolam o assunto original da proposta. Entre eles, a nova Eletrobras se obriga a gerar 6 mil MW, ao longo de 15 anos, de energia termelétrica a gás natural, que na prática significa energia suja e mais cara, além de um aumento estimado em 25% de emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE).

Segundo a lei de privatização, as termelétricas devem ser construídas nas regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste, principalmente em localidades que não possuem infraestrutura de transporte de gás natural, o que obriga a construção de gasodutos cruzando a Amazônia e os demais biomas brasileiros. Além de uma energia mais cara, os custos dessa infraestrutura levarão ao aumento do preço da energia elétrica para os consumidores.

As termelétricas a gás natural terão o objetivo de aproveitar as reservas de gás natural da Amazônia e dos outros estados produtores. Paralelamente, estão os interesses de grandes empresas como a OAS, uma expert na construção de gasodutos. As demais fontes de energias genuinamente limpas como eólica e solar, mais baratas, não tiveram o mesmo espaço de incentivo nas obrigações da nova Eletrobras, o que vai na contramão do resto do mundo.

Um outro trecho adicionado à lei de privatização da Eletrobras prevê a contratação obrigatória de construção de Pequenas Centrais Hidrelétricas, 2 mil MW, em regiões ambientais sensíveis como a Amazônia. A principal interessada nesse seguimento é a Brasil PCH, uma associação das empresas Chipley SP Participações S.A, Eletroriver S.A, BSB Energética, com o objetivo de expandir seu portifólio de PCHs. Mas, não fica só nisso. Ao aprovar a “privatização” da Eletrobras, Bolsonaro e o Congresso aprovaram também a possibilidade de garantir a navegabilidade dos rios Madeira e Tocantins. Como? Dois rios com grandes hidrelétricas, que poderão receber eclusas para viabilizar hidrovias e, assim, fechar o círculo definitivo do ataque total ao avanço logístico do agronegócio e da mineração.

Como se tudo isso não bastasse, o agronegócio do norte do Mato Grosso está intensificando sua busca por terras indígenas no Cerrado para estabelecer parceria na produção de soja e arroz. Indígenas estão sendo convencidos pela Funai que podem se “associar” ao agronegócio, cedendo suas terras. Mas esse assunto fica para o próximo artigo.

 

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