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Reprodução Correio da Cidadania
A
síntese é um quadro onde o ordenamento jurídico de proteção ao meio ambiente e
aos povos da terra é desmantelado pelo próprio governo, ao passo que os
entraves burocráticos e as empresas nacionais mais capacitadas para grandes
obras praticamente desapareceram na esteira da Lava Jato. Ficou muito mais
fácil realizar obras ferroviárias, pois o novo regime de autorização aprovado
no final de 2021 pelo Congresso Nacional permite que qualquer empresa se
habilite. Não há mais a chamada licitação.
Gabriel
Brito, da Redação
Era
15 de agosto de 2012 quando o governo federal de Dilma Rousseff lançou Plano de
Investimentos em Logística (PIL), a mais ambiciosa iniciativa do governo
federal para ativar o setor produtivo nacional e sustentar um ‘milagre
econômico petista’ que já se mostrava declinante. O pacote visava promover
concessões e outorgas em portos, aeroportos, rodovias, hidrovias e ferrovias, e
movimentaria por volta de 450 bilhões de reais em investimentos.
Era
o tempo da euforia dos mercados com o modelo econômico brasileiro, em vias de
ser coroado pelos megaeventos esportivos, e empresas como Odebrecht, OAS e
Camargo Correa pontificavam no setor produtivo privado nacional. Dilma acabara
o que na época ficou conhecida como “a faxina anticorrupção”, principal marca
de seu primeiro ano de governo, quando demitiu seis ministros no primeiro
semestre de seu mandato por acusações de corrupção.
O
PIL fora concebido também como política de contenção às altas taxas de juros em
voga. No entanto, com uma taxa de retorno dos projetos que não foi além de 7%,
os grandes “investidores” não puderam sair de suas cômodas aplicações em
títulos financeiros, em especial do Tesouro, que pagavam juros de dois dígitos
sem qualquer risco ou exigência de gasto produtivo real.
O
pacote de investimentos não decolou e, para muitos, as iniciativas da então
presidente em moralizar seu gabinete de governo começaram a custar a lealdade
do aliado PMDB e do sempre governista ‘centrão’. Seu mandato terminou em
estagnação econômica e uma vitória eleitoral apertada que prenunciava uma
dificílima governabilidade para o segundo mandato.
No
meio do ambicioso pacote descansava o projeto de construção da EF-170, mais
conhecida como Ferrogrão, uma portentosa estrada
de ferro de mais de 900km de extensão que ligaria o polo agroextrativista de
Sinop-MT ao porto de Miritituba, norte do Pará, escoadouro da
produção agromineral brasileira.
Já no governo Temer, o consórcio EDLP – Estação da Luz Participações Ltda. –
foi escolhido para realizar os estudos da Ferrogrão ou EF-170. O grupo envolvia
as tradings Amaggi, ADM, Bunge, Cargill, Dreyfus e EDLP, que custearam os
estudos técnicos e de diagnóstico ambiental da ferrovia para a Agência Nacional
de Transporte Terrestre (ANTT).
“Em
2014, o Ministério da Infraestrutura publicou um edital para a elaboração dos
Estudos de Viabilidade da ferrovia, e a Estação da Luz Participações – EDLP -
se propôs a fazer o relatório de viabilidade técnica, entregue em 2016.
Inicialmente, a Ferrogrão seria licitada por um período de 69 anos. No governo
de Jair Bolsonaro a regra está mudando para um regime de concessão em que os
investidores ou empresas poderão obter uma Autorização Simplificada, conforme a
Medida Provisória – MP
1065/21,
um novo marco legal do transporte ferroviário que dá permissão para construção
de novas ferrovias por meio desta autorização simplificada, sem necessidade de
licitação. O custo atualizado da construção da Ferrogrão já está perto dos R$
20 bilhões. A ideia do governo federal é um retrocesso histórico comparável com
a época da ditadura militar, que tinha o objetivo de ‘ocupar’ o vazio
demográfico na Amazônia”, escrevera a ambientalista e pedagoga Telma
Monteiro,
em trabalho pioneiro sobre o tema a respeito deste projeto.
Em
busca de investidores
Se
antes vivia-se uma euforia econômica quase sem precedentes, a ponto de um
projeto de tal envergadura obter pouco destaque nos debates de então, hoje
observa-se um país devastado por uma pandemia e uma crise econômica sem data
pra acabar, com alta descontrolada de preços, desemprego e corrosão da renda
média dos trabalhadores. Membro de um governo que não tocou nenhuma obra
relevante, o
então ministro da Infraestrutura Tarcisio Gomes fez um “Roadshow” por países
líderes do capitalismo global em outubro de 2021, a fim de obter financiamento
privado para a EF-170. Afinal, a febre brasileira do “combate à corrupção” veio
acompanhada de uma política macroeconômica de uma nota só, onde reina
inconteste a austeridade total nos orçamentos públicos sociais e o BNDES foi
extinto de seu papel de indutor do crescimento econômico. Mas, como se vê nas
iniciativas governamentais de repaginar o Bolsa Família e tentar restringir os
impactos da inflação em alimentos, combustíveis e energia, a fé no setor
privado como organizador da retomada dos investimentos e da atividade econômica
produtiva parece arrefecer.
E,
apesar do interesse formal manifestado por grandes holdings do setor
agromineral, nacional e internacional, o ministro voltou de mãos abanando. O
violento processo de desmonte das legislações e órgãos de controle ambiental,
associado ao brutal mandato do ministro Ricardo Salles no Ministério do Meio
Ambiente, amplamente condenados pela opinião pública e governos dos países
líderes da economia global, parece ter gerado o chamado ambiente de insegurança
jurídica.
Além
disso, ao longo dos primeiros três anos de governo Bolsonaro, o país foi
pautado por episódios marcantes, como o Dia do Fogo, os incêndios do Pantanal,
frequentes cercos e invasões a territórios indígenas em função dos recursos
minerais do subsolo e a já tradicional violência no campo em razão de conflitos
pela terra.
Se
de um lado houve enfraquecimento em órgãos como Ibama, Funai e ICMBio, ao se
ver constrangido pelas críticas o presidente da República criou o Conselho
Nacional da Amazônia, via decreto publicado no Diário Oficial em 12 de
fevereiro de 2020. Como de hábito de sua administração, o órgão não se
caracteriza por prestigiar funcionários técnicos de carreira e sua chefia foi
dada ao general e vice-presidente Hamilton Mourão. Para além de declarações
protocolares de respeito às normas ambientais e metas de redução de
desmatamento, não há qualquer ação de destaque do órgão no controle do assédio
à floresta.
Aliás,
sobre a crescente violência contra povos indígenas, a exemplo do ataque
aos yanomâmi que
terminou em brutalidade contra crianças, nem sequer declarações protocolares
foram dadas.
Mais
recentemente o Acampamento Terra Livre, organizado pelos povos indígenas em
oposição à tese do Marco
Temporal da Terra, defendida pela ampla bancada ruralista e o próprio
gabinete de governo, e a divulgação dos altos índices de desmatamento no mês de
abril completam o corolário de fatos geradores de desconfiança para grandes
negócios na atual conjuntura brasileira.
Mesmo
assim, se consideramos as declarações de alguns dos generais brasileiros, além
do próprio presidente da República, a respeito do que seria uma gestão adequada
da Amazônia, inclusive com apoio a projetos de garimpo e mineração, parece
difícil não concluir que o Estado brasileiro se porta como ativo mobilizador do
avanço do capital privado sobre a floresta.
Resta
saber quais capitais privados toparão a empreitada, uma vez que até o
agronegócio interessado mais propriamente no corredor de escoamento de seus
grãos reconhece o avanço de práticas predatórias contra os territórios que
margeiam o traçado da Ferrogrão.
á
as grandes empresas internacionais que testemunharam o Roadshow do ministro,
têm demonstrado preocupação com projetos de exploração agromineral sem
sustentabilidade comprovada, em especial quando não contam com aprovação dos
povos que habitam os territórios cobiçados. Por fim, a participação brasileira
na COP-26 e o isolamento político internacional em que o país se submergiu
parecem afastar de vez as empresas da “primeira linha” do capitalismo global.
Parque
Nacional do Jamanxim
Ponto importantíssimo da obra é que ela acompanharia trecho da BR-163, que já
corta ao meio o Parque Nacional do Jamanxim, além de cruzar uma miríade de
terras indígenas, habitadas por diversas etnias. Em 2016, Dilma editou MP que
desafetava o trecho do Jamanxim que seria afetado pela construção da Ferrogrão,
decisão que deve ir a julgamento pelo STF em junho após contestação com Ação
Direta de Inconstitucionalidade (Adin) por parte do PSOL.
Localização do Parque Nacional
Jamanxin (PARNA) | Mapa: reprodução Telma Monteiro.
“O Parque Nacional do Jamanxim, unidade de conservação criada em 2006, já sofre
os impactos da BR-163 no sentido norte-sul. A importância dessa Unidade de
Conservação (UC) é tanta que é considerada uma ‘unidade-corredor’, pois liga o
mosaico do Tapajós ao mosaico do Xingu. São mais de 17 milhões de hectares de
áreas protegidas federais. O asfaltamento da BR-163 já está concluído e com ele
o aumento do tráfego; segundo os estudos técnicos da Ferrogrão: ‘incrementou os
acidentes envolvendo a fauna silvestre, as ocorrências de incêndios e a
vulnerabilidade a desastres com cargas contaminantes’”, anotara
Telma Monteiro em 2021.
Com
as travas jurídicas interpostas pelo MP, a desconfiança dos grandes
investidores e a aproximação das eleições presidenciais, o projeto parece esbarrar
em numerosos obstáculos para sair do papel. Até porque não está claro de onde
viriam os recursos. No entanto, a pesquisadora e colunista deste Correio
é enfática na compreensão dos interesses em jogo.
“Os
933 km da Ferrogrão podem sair do papel a qualquer momento. O novo marco legal
ferroviário foi implantado pelo governo Bolsonaro como forma de agilizar o
processo. Agora a empresa, investidores escolhem como, quando e onde e
apresentam o projeto da ferrovia que será autorizada como concessão. Como já
acontece com os portos e aeroportos no Brasil: concessão, outorga por
autorização para construir e operar ferrovias, ramais, pátios e terminais
ferroviários. A Medida Provisória nº 1.065/21, escancara a liberdade de
empresas transportadoras, operadores logísticos e indústrias de requisitar
autorização ferroviária para construir e operar. O estudo técnico conterá a
escolha do traçado, a localização e necessárias obras complementares. A
responsabilidade de fiscalizar e fazer cumprir a legislação ambiental, nesse
caso, pode sair das mãos do governo e passar para a iniciativa privada”.
Há
quem queira
Atualmente,
apenas uma desconhecida empresa se candidatou a receber verbas e tocar o
projeto. Trata-se da Zion Real Estate, até aqui ignorada pelo público e a
imprensa de massa.
“A primeira empresa e única (até o momento da postagem deste artigo) a formalizar
o pedido para construir a Ferrogrão chama-se Zion Real Estate Ltda. Uma
pesquisa sobre a empresa nos leva a uma pequena construtora com características
fora do escopo que se espera para a construção de ferrovias e sem qualquer
histórico de obras públicas. A Zion Real Estate Ltda tem duas sedes e dois CNPJs: 27.691.878/0001-77, uma
sede está na cidade de Sorriso, MT, com 4 anos e 10 meses de existência,
fundada em 09/05/2017; outra com o CNPJ 27.691.878/0002-58, foi fundada em
20/09/2021, com sede na Rua F-1 83 Sala 01, Praeirinho, Cuiabá, MT. A principal
atividade econômica, conforme consta na Receita Federal, é a construção de
moradias, não há menção sobre expertise em construção de ferrovias.
A
Zion teve origem no Paraná com duas irmãs,
Gabrieli
Mosena e Daniela Mosena Librelato (*2), uma arquiteta e outra engenheira civil. Daniela
carrega o sobrenome Librelato, nome da empresa que é uma das maiores
fabricantes de implementos rodoviários do país. Para se ter uma ideia do porte
da Librelato, ela acabou de fechar acordo para fornecimento de 300 Rodotrens Basculantes Premium à AMAGGI, empresa do setor do agronegócio, e também voltada
para Commodities, Logística e Operações e Energia do Brasil. A Librelato tem
sede em Cuiabá, MT, e o setor do agronegócio é seu maior cliente”.
O
bairro em que se localiza a sede da Zion foi historicamente ocupado por pessoas
pobres e fica na periferia da cidade, longe de qualquer eixo comercial mais
tradicional.
No dia 24
de janeiro, o Diário Oficial da União publicou o Aviso de Autorização, firmado
pelo Ministério da Infraestrutura, que acolheu oficialmente o pleito da Zion em
obter o direito de construir Ferrogrão, em seus três trechos. O ofício está
assinado pelo atual ministro da Infraestrutura, Marcelo Sampaio Cunha Filho.
Em
visita ao inacabado site da empresa, há um logotipo da construtora BS na lista
de parceiros. A BS está em recuperação judicial desde
2011. Tem dois CNPJs, ambos inaptos na Receita neste momento (confira aqui e aqui) e capital social
declarado de R$ 500.000. O quadro de sócios e administradores conta com três
nomes em ambos os registros: Aglaucio Viana de Souza – Diretor, e o casal Eliane Pereira
Borges dos Santos – Diretora, e Sidnei Borges dos Santos – Presidente.
Empresa
postou o outdoor em suas redes sociais. Reprodução.
A
empresa é publicamente entusiasta do presidente Jair Bolsonaro e fez até
outdoors de apoio à sua campanha presidencial em 2018. Mais que isso, Eliane
foi candidata à deputada federal pelo PSC no Mato Grosso, em pleito no qual não
conseguiu se eleger após obter 18.313 votos. Em sua ficha no TSE, declarou
patrimônio de R$ 1,2 milhão. As irmãs Gabrieli e Daniela, da Zion, por sua vez,
são suas sobrinhas. Apesar do banner no site da Zion, oficialmente, Zion e BS
não se declaram parceiras.
Lista
de parceiros da Zion publicada no site da empresa | Reprodução
Em
meados de 2012, o passivo oficial da empresa era de 95 milhões. Destaque até na
mídia corporativa, a BS vivera um boom entre 2008 e 2010, chegando a faturar
até 180 milhões em obras residenciais, com especialidade em conjuntos
pré-construídos.
De
acordo com Eduardo Henrique Viera Barros, da ERS Advocacia, que prestou
serviços à BS em sua recuperação judicial, “a construtora enfrentou problemas no
cumprimento de seu principal projeto, a construção do Polo Industrial de Jirau,
tendo que tomar empréstimos em instituições financeiras para conseguir capital
de giro. Além disso, alguns empreendimentos da incorporação imobiliária no
Norte do país se tornaram inviáveis, causando graves prejuízos, principalmente
por conta da crise do ano de 2008, que arrasou a economia em todos os setores
do mundo”.
Conforme
nota pública da própria ERS: “Eduardo Henrique explicou que em 2010, com a
necessidade de captação de recursos para finalização de obras, pagamentos de
folha de salário, a construtora contratou com uma instituição financeira uma
operação de R$ 50 milhões. A partir daí a BS entrou num círculo vicioso de
empréstimos aos bancos privados, que sabido por todos praticam uma das maiores
taxas de juros do cenário mundial, para cobrir outros financiamentos e usando
todos os recursos que entravam somente para amenizar juros e renovar
financiamentos”.
Em 2011, por conta no
atraso da entrega dos conjuntos residenciais de Porto Velho, contratados para
mitigar a remoção compulsória dos afetados pela construção da hidrelétrica de
Jirau, que arrastou um enorme contingente de trabalhadores para as obras e
acumulou problemas de caráter social, o MP-RO entrou com pedido de quebra de
sigilo fiscal da empresa. A partir de então, as coisas não voltaram a decolar
para a empresa do casal Borges.
Em 2021, os processos
judiciais ainda seguiam e os donos da empresa conseguiram decisão judicial
favorável ao desbloqueio de bens.
Situação
atual
A
síntese é um quadro onde o ordenamento jurídico de proteção ao meio ambiente e
aos povos da terra é desmantelado pelo próprio governo, ao passo que os
entraves burocráticos e as empresas nacionais mais capacitadas para grandes
obras praticamente desapareceram na esteira da Lava Jato, sob as punições e
acordos que os promotores da operação capitaneada pelo ex-juiz Sergio Moro
fizeram com os executivos das outrora “campeãs nacionais”.
Ficou
muito mais fácil realizar obras ferroviárias, pois o novo regime de autorização
aprovado no final de 2021 pelo Congresso Nacional permite que qualquer empresa
se habilite. Não há mais a chamada licitação. Com o novo modelo, empresas de
qualquer porte ficam responsáveis pelo planejamento e construção, e têm toda a
autonomia. Teoricamente o Estado vai apenas fiscalizar as normas de segurança
após conceder a chamada Autorização de Construção.
Segundo
o Ministério da Infraestrutura, a Ferrogrão (EF-170) está recebendo proposta e
projetos de empresas. O Programa de Autorizações Ferroviárias ou Pro Trilhos,
segundo o MInfra, vai permitir que “o setor privado possa construir e operar
ferrovias, ramais, pátios e terminais ferroviários”. Além da ferrovia para
escoar os grãos do norte do Mato Grosso, está prevista a construção de 54
pátios de carga e descarga e a recuperação da BR-163. Mas até o momento apenas
uma empresa se habilitou para o megaprojeto: a Zion
Real Estate.
No
caso da Ferrogrão o governo federal também decidiu disponibilizar, para a
empresa habilitada, R$ 2,2 bilhões para reduzir riscos. Em janeiro de 2021, o
Tribunal de Contas da União (TCU) se manifestou contra essa decisão de destinar
o recurso para a futura empresa que vai construir a ferrovia. Segundo o governo
federal esse recurso seria para garantir “riscos não gerenciáveis” atribuídos
ao poder público, sem especificar o que poderiam vir a ser tais “riscos não
gerenciáveis”.
Ouça
o podcast com a ambientalista Telma Monteiro sobre Ferrogrão:
CorreioCast11: Ferrogrão (EF-170) e a exploração da Amazônia, com Telma Monteiro
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Gabriel
Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.
Colaboração
de Telma Monteiro.
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