Texto maravilhoso escrito pelo meu amigo Rodolfo Salm para o Correio da Cidadania. Queria que ele soubesse que eu assino embaixo. Sim, vamos votar em Lula, acreditando que ele ainda vá fazer um "mea culpa" para todas as barbáries ambientais cometidas durante o seu governo e o de Dilma Rousseff. Não esqueçamos que foi Dilma quem editou o PL para reduzir o Parque Nacional do Jamanxim, e permitir a passagem da Ferrogrão. Concordo que Bolsonaro é bandido e tem como objetivo destruir a Amazônia e os povos indígenas, para dar lugar ao seu projeto de exploração. Rodolfo Salm, no entanto, com maestria, nos mostra que Lula pode reverter isso, e eu complemento que basta ele reeditar suas promessas da campanha de 2002, gravadas numa carta, onde prometia, entre outras coisas, não construir hidrelétricas na Amazônia. Obrigada, querido amigo Rodolfo Salm, você tirou um nó da minha garganta. Eis o texto:
Foto: José Cruz/ Agência
Brasil
oto: José Cruz/ Agência Brasil
Rodolfo Salm
14/07/2022
A verdade é que eu enjoei
de escrever como o governo Bolsonaro é bandido, destruidor e tem feito de tudo
para acabar com a floresta amazônica. Muita gente tem escrito sobre isso melhor
do que eu e de forma mais detalhada. Posso até estar sendo precipitado, mas me
arrisco a dizer que esse governo acabou, que a eleição de Lula é certa, que ele
tomará posse e será o futuro presidente. Se eu errar alguma dessas previsões,
me perdoem, mas é desse ponto que começo minha reflexão.
Quando Lula tomar posse,
o país estará economicamente arruinado e o povo cheio de esperanças no
presidente que uma vez (quase) acabou com a fome e o desemprego. Mas ele pouco
poderá fazer no curto prazo. No entanto, a extrema direita não desaparecerá e
fará de tudo para desestabilizar o novo governo. Isso posto, estará ele
disposto a travar uma verdadeira guerra contra centenas de milhares de
garimpeiros, grileiros e toda a elite econômica de uma área equivalente a mais
da metade do território nacional?
Uma guerra necessária
para pôr um freio na destruição acelerada da floresta que ora apavora o mundo,
porque esse povo não vai aceitar recuar pacificamente. Acredito que nem Lula
saberia responder a tal questão. E caso estivesse disposto a enfrentar essa
gente, eu mesmo também acharia prudente não o dizer antes do tempo, para não
pôr em risco a eleição que estou dando como certa.
Porém, algumas
declarações recentes sobre a região amazônica me deixaram especialmente
preocupado. Estão todas em uma entrevista que ele deu à rádio Band News de Manaus.
Em 80% da entrevista, falou coisas certíssimas e que não vêm ao caso comentar
agora porque já declarei meu voto nele no primeiro turno e estou escrevendo
para outros que também certamente já tomaram a mesma opção.
Vamos aos problemas:
Lula defendeu a
reabertura e pavimentação da BR-319, que ligaria Manaus a Porto Velho, em
Rondônia. Empresários teriam dito que essa obra é fundamental para o
desenvolvimento da Zona Franca. Disse que, se feita com todo cuidado, incluindo
até pontos de travessia de animais, teria um impacto ecológico desprezível.
Ecologistas têm pânico da ideia de pavimentação da estrada, pois ela corta uma
das áreas mais preservadas da Amazônia, com florestas prístinas e povos
isolados, e ao mesmo tempo próxima de uma potente frente de colonização, que se
estende por toda a região sul da floresta.
Ao defender que a obra
seria viável, se feita "com todo cuidado", Lula incorre no mesmo erro
que cometeu lá atrás, em seu primeiro governo, quando avançou com a
pavimentação da BR-163 enquanto criou inúmeras unidades de conservação no seu
entorno, momentaneamente contendo os desmatamentos. O erro foi ignorar o fato
de que os ventos políticos sempre mudam e a governança que uma hora é forte
sempre pode ser enfraquecida. Não precisou nem o PT sair do governo e, sob
Dilma, os desmatamentos se alastraram ao longo da BR-163.
Mais tarde, com
Bolsonaro, a região se tornou o principal foco de desmatamento na Amazônia. O
estado atual de calamidade, evidentemente, é responsabilidade do atual governo,
mas precisamos admitir que também é, em boa parte, culpa de quem investiu na
pavimentação daquela estrada em primeiro lugar. Se Lula, em seu provável
próximo governo, persistir com a ideia de recuperar a BR-319, cedo ou tarde a
mesma coisa acontecerá.
Resta perguntar àqueles
empresários: se a estrada pavimentada é tão importante para a Zona Franca, como
ela já chegou tão longe sem este acesso? Assim, em nome da preservação da
floresta que está sendo devastada rapidamente neste momento, não poderia seguir
sem o acesso ecologicamente perigoso?
Outro ponto extremamente
problemático da entrevista foi sua defesa das hidrelétricas do Rio Madeira e de
Belo Monte, no Rio Xingu. Só não arranquei os adesivos da campanha de Lula do
carro porque são muitos e um amigo que entende das sutilezas da política me
alertou de que Lula não poderia fazer diferente neste momento mesmo que
estivesse arrependido ou não estivesse disposto a construir novas grandes
hidrelétricas na Amazônia. “A campanha é hora de defender suas administrações
anteriores e ponto final”.
Foi aí que Lula disse que
os ambientalistas o criticavam por essas obras pois eram contra hidrelétricas
de modo geral. Portanto, seriam contra todas as hidrelétricas em qualquer lugar
e em qualquer situação, comparando a divergência àquela entre torcidas de times
de futebol rivais. Nem preciso argumentar que cada obra deve ser avaliada em
seu contexto específico. Lula gosta de contar uma história para ridicularizar
as preocupações dos ambientalistas. Diz que na época da construção de Itaipu,
os ecologistas alertavam que as barragens mudariam o eixo da Terra e o clima da
região. O fato é que foram construídas tantas barragens em altas latitudes,
especialmente no hemisfério norte, que mudamos levemente a distribuição de
massa do planeta, acelerando em uma fração de segundo o movimento de rotação da
Terra. Não que haja um problema em dias minusculamente mais curtos, mas o fato
ilustra a magnitude das transformações que estamos produzindo. Lula entendeu
tudo errado e segue repetindo a história como se os ecologistas fôssemos todos
estúpidos.
Sobre o clima na região
Sul, quem acompanha as secas recorrentes na região pode dizer com segurança que
estavam errados ao dizer que Itaipu traria mudanças climáticas? A construção da
hidrelétrica certamente foi a causadora de grandes desmatamentos no Paraná que
foram, sim, responsáveis por mudanças climáticas. Itaipu certamente teve seu
papel no desenvolvimento do país, e ainda tem. Mas podemos falar o mesmo das
grandes hidrelétricas na Amazônia construídas sobre o seu governo? Ainda mais
agora que novas tecnologias de geração de energia surgem e ficam mais baratas a
cada dia?
Sobre a construção das
hidrelétricas do Madeira, Lula disse que chamou o maior especialista em
sedimentos do mundo, vindo da Índia, que lhe garantiu que as hidrelétricas
poderiam ser feitas sem problema nenhum. Mas para quê chamar alguém da Índia se
temos gente altamente qualificada nas nossas universidades? Muitas das quais
ampliadas ou criadas pelo próprio Lula, preciso destacar. Talvez porque os
nossos pesquisadores já condenavam a construção das hidrelétricas do Madeira
àquela época.
Eu não sou especialista
em sedimentos de rio, mas testemunhei como o lago de Belo Monte se tornou
lamacento em pouquíssimo tempo, sendo que o Xingu é um rio de águas claras com
pouco sedimento, o que faz com que o processo lá seja bem mais lento do que no
Madeira.
Imagine tal processo multiplicado várias vezes nos rios de água branca (que tem esse nome justamente pela abundância de sedimentos) ... A prova das consequências negativas dessa construção sobre a dinâmica de seguimentos do rio está nas enchentes observadas nos últimos anos na cidade de Porto Velho. O rio, cheio de sedimentos, não dá mais conta de sua vazão máxima e transborda abundantemente sobre a cidade ribeirinha.
A energia hidrelétrica
pode parecer barata, mas quem paga o preço são as populações mais vulneráveis
nas cidades diretamente atingidas pela construção das barragens.
Lula ainda diminuiu a
preocupação com os grandes bagres que tiveram suas rotas migratórias
interrompidas pela construção das barragens. Disse que os peixes poderiam ser
criados em cativeiro pelos antigos pescadores, uma das grandes mentiras
divulgadas por barrageiros. Para começar, ribeirinho não é criador de peixe.
Depois, experimente criar uma pirarara ou um surubim em cativeiro. É a coisa
mais difícil do mundo. Impossível em escala comercial. Então não vamos falar
bobagem. Se Lula não está preocupado com os bagres, que pelo menos diga
claramente.
O mais doído para mim foi
acompanhar o trecho da entrevista em que o ex-presidente falou sobre Belo
Monte, pois acompanhei de perto a luta contra a barragem e seu processo de
construção. Vivo hoje as consequências nefastas da obra, pois moro literalmente
na beira do lago de Belo Monte. Em primeiro lugar, Lula disse que conversou e
fechou acordo com todos, com ribeirinhos, com o MAB (Movimento dos Atingidos
por Barragens) e “até com o bispo” antes de decidir dar início à obra de Belo
Monte.
É verdade que conversou
com muita gente, mas não fechou acordo com ninguém desses citados. Ouviu muitas
críticas e no final decidiu que ia fazer a barragem e pronto. Lula conversou
com o bispo Dom Erwin Kautler só para dizer que a hidrelétrica não nos seria
“enfiada goela abaixo”, como nos relatou o bispo. Só para depois fazer exatamente
isso. Quando mostramos essa declaração recente de Lula aos nossos companheiros
de luta, os ribeirinhos se revoltaram: “Eu não fiz acordo nenhum com ele”. A
mesma coisa disse o pessoal do MAB. Cá para nós, quando quer, Lula pode ser
bastante mentiroso (não tanto quanto Bolsonaro, caso algum minion queira tirar
essa frase de contexto). E vai ter que mudar isso aí se quiser reverter o
estado de bandidagem em que se encontra a região amazônica hoje em dia.
Lula lembrou que Belo
Monte foi construída com um lago a fio d'água, que a área alagada não é muito
maior do que aquela já alagada anualmente pela cheia natural do rio. É verdade.
Mas não disse que a interrupção do ciclo de subida e descida das águas teria
efeitos profundos sobre a ecologia de mais de uma centena de quilômetros de
rio. Para começar, aquelas árvores que passavam parte do ano debaixo da água e
outra parte no seco, morreram, apodreceram e tornaram a qualidade da água
péssima.
Já falei sobre o acúmulo
de sedimentos que transformou o fundo do rio em um imenso lamaçal. A Volta
Grande do Xingu hoje em dia sofre com a falta d'água, prejudicando a
navegabilidade e os processos naturais necessários à sobrevivência dos peixes e
tracajás. Isso para não falar dos impactos sociais, que foram terríveis, principalmente
sobre os mais vulneráveis, como crianças entregues à prostituição, por exemplo.
Hoje em dia Altamira tem uma das maiores taxas de criminalidade do país. A
cidade foi invadida por gangues como o Comando Vermelho na época de Belo Monte,
que seguem firmes por aqui. Altamira tem um dos maiores índices de suicídio de
jovens do país. Lula disse na entrevista que não sabe de nada disso porque
desde que deixou a presidência parou de acompanhar o caso. Mas os problemas de
Altamira volta e meia aparecem nos principais jornais impressos e na televisão.
Se Lula parou de acompanhar notícias desde que deixou o Planalto, como pode se
habilitar como candidato à presidência? Claro que não é verdade. Soltou mais
essa para não precisar falar dos problemas que sabe ter criado.
Altamira era uma cidade
feliz diante de um rio vivo e limpo. Hoje, a cidade é triste, morta e sem
perspectiva. O mais irônico é que aqueles que criticavam a barragem na época de
sua construção são os mesmos que estão defendendo a eleição de Lula nesse momento.
Todos os que defendiam e foram beneficiados por Belo Monte, estão com
Bolsonaro. Lula sempre foi um desenvolvimentista, enquanto Bolsonaro é um
bandido da pior espécie. Por isso estamos com o primeiro. Agora, será ele capaz
de controlar a bandidagem alucinada que tomou conta da Amazônia? Ele vai fazer
a reforma agrária de que tanto precisamos? Ou vai permitir a construção do
Ferrogrão, cujas terríveis consequências já foram bem descritas por Telma Monteiro? Vai acabar com os garimpos, zerar os desmatamentos e pôr um controle
rígido sobre a mineração? Ou vai se unir novamente às elites locais, nos
deixando mais uma vez uma ou outra sobra?
Seria muito fácil para ele
ser muito melhor que o governo atual “em comparação” sem, no entanto, fazer as
mudanças profundas necessárias a uma verdadeira transformação. Ele vai se
conformar com essa opção politicamente mais simples? Difícil responder. Só o
tempo dirá. Até o dia da posse seguirei torcendo para que dê tudo certo.
Depois, colocando pressão para que ele, em sua última chance na vida, cumpra o
seu destino de nos ajudar a realmente mudar esse país para melhor. Se quiser,
de fato, fazer isso, terá de desafiar grandes forças econômicas e terá de
travar uma verdadeira guerra na Amazônia. As elites locais serão, sem dúvida,
uma força potente pela devastação, mas a comunidade internacional também pode
se unir a ele em uma espiral ecológica virtuosa. Espero que tenha vontade e
coragem para tal.
Rodolfo Salm é PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, formou-se em Biologia pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Atualmente é professor da Universidade Federal do Pará.
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