Traçado da Ferrogrão - Bacia do Tapajós à esquerda e Bacia do Xingu à direita Fonte da imagem: EIA/RIMA versão 2020 |
Primeira Parte
O
Supremo Tribunal Federal (STF) deverá julgar, no próximo dia 31, a Ação Direta
de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6553 que confirmará ou não a legitimidade
constitucional da Ferrogrão ou EF-170. A ação foi apresentada pelo PSOL, em 2021,
e se fundamenta na Constituição Federal. A Lei nº 13.452/2017 aprovada pelo
Congresso e decorrente de Medida
Provisória (MP) editada no governo Dilma Rousseff, seria inconstitucional, pois
não poderia desafetar parte do Parque Nacional do Jamanxim (PARNA Jamanxim), Unidade
de Conservação Federal de restrição integral, para passar a ferrovia.
Três,
dos principais ministros do governo federal, ministro do Desenvolvimento,
Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), Geraldo Alckmin, ministro da Agricultura
e Pecuária, Carlos Fávaro e o ministro da Infraestrutura, Renan Filho, entendem
que a Ferrogrão seria indispensável para escoar para o Arco Norte, as
commodities agrícolas de Mato Grosso.
O
que é a Ferrogrão ou EF-170[1]
O
trajeto previsto para a Ferrogrão é de 1.188 km e segue paralelo - separado em
alguns trechos por apenas 40m - com a polêmica BR-163, ou rodovia Cuiabá–Santarém,
que foi construída durante os anos 1970. A Ferrogrão deverá atravessar um
mosaico de Unidades de Conservação e Terras Indígenas, podendo agravar e tornar
ainda mais irreversíveis os impactos promovidos pela rodovia BR-163. Além de
impactos ambientais e sociais, a EF-170 vai interceptar 17 municípios, dos
quais 12 estão no estado do Mato Grosso e os outros cinco no estado do Pará.
O
projeto da ferrovia data de 2012, lançado pelo governo federal – segundo
governo Lula - dentro do Programa de Investimento em Logística – PIL para complementar
a integração logística do norte do Mato Grosso. Já em 2012, o lobby do
agronegócio se intensificou no sentido de pressionar o governo para que a
ferrovia pudesse ser rapidamente aprovada. Em 2014, o Ministério da
Infraestrutura publicou um edital para a elaboração dos Estudos de Viabilidade
da ferrovia, e a Estação da Luz Participações – EDLP, apoiada pelas tradings
ADM, Amaggi, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus, se propôs a fazer o relatório de
viabilidade técnica, entregue em 2016.
O lema “Integrar para não Entregar”
está muito presente no projeto da Ferrogrão. É esse o objetivo: escoar a
produção de grãos do Mato Grosso e interligar com o escoamento da produção no
Arco Norte, outra estratégia de integração com rodovias, ferrovia, portos,
estações de transbordo para unir Amazonas, Pará, Amapá e Maranhão. Mais uma
vez, a Amazônia, tão explorada desde o descobrimento e ocupada no período da
ditadura militar, torna-se fundamental para os planos de destruição
impulsionados pelo governo federal e seus aliados do agronegócio predatório.
Sim, porque não há plano B, o de não criar impactos na maior floresta do mundo
e nas terras indígenas.
A grande lacuna nos estudos
ambientais: uma análise genocida
Impossível iniciar uma análise dos
estudos ambientais da Ferrogrão ou EF-170 sem mostrar, dentre suas inúmeras
falhas, a que interpreto como uma das mais criminosas do EIA/RIMA. No capítulo Meio
Socioeconômico - 5.3.5.4 Comunidades Tradicionais, atualizado em 2020, consta
que foi encontrada apenas uma comunidade tradicional no traçado de 1.188
km entre Sinop, no estado de Mato Grosso, e o porto de Miritituba no estado do
Pará, às margens do rio Tapajós. Há uma tentativa deliberada de ignorar, nesse
estudo, todos os povos indígenas e comunidades tradicionais na área de estudo. É
um genocídio documental.
P.274 “Das cinco consultas
realizadas, três instituições se manifestaram. Ao analisá-las, infere-se que
não há possiblidade de confirmar a existência de comunidade tradicional na Área
de Estudo”
“(...) o esforço realizado resultou
na identificação de uma comunidade que potencialmente se encaixe na categoria
em questão.”
“A Comunidade Aruri, no município de
Trairão/PA, foi apontada por moradores da zona rural como tipicamente de
pescadores, categoria confirmada pela liderança comunitária. O presidente da
Colônia de Pescadores Z-74 apontou tal comunidade como tradicional, pela
centralidade da pesca artesanal nas dinâmicas econômica e cultural dos
moradores.”
Esse
é um capítulo muito sensível e que é tratado com desrespeito absoluto. No texto
do EIA consta não haver possibilidade de confirmação de existência de
comunidades tradicionais na área de estudo da Ferrogrão. Isso torna o documento
inconsistente e com poder que anularia qualquer pretensão de licenciamento da
ferrovia pelo órgão ambiental. Sem contar, como agravante, a falta de respeito
para com os 48 povos indígenas ignorados ao longo da faixa de 1.188 km, conforme
mencionado na Representação do MPF ao MP do TCU, no âmbito do Inquérito Civil N.
1.23.008.000678/2017-19.[2]
Esse
entendimento produzido no EIA/RIMA, sobre a inexistência de povos indígenas e
comunidades tradicionais ao longo da área de estudo da Ferrogrão, desqualifica
o estudo. A invisibilidade imposta às comunidades tradicionais na Área de
Estudo deixa patente o desrespeito aos povos da Amazônia. O texto expõe um “esforço”
na identificação de uma única comunidade tradicional, a Comunidade Aruri,
de pescadores, no município de Trairão, no Pará, considerada não “oficial”,
pois “não foi localizado processo formal de reconhecimento da condição de
comunidade tradicional ou de elaboração de Protocolo de Consulta (conforme a
OIT 169) aplicável a processos de licenciamento ambiental.”
No
entanto, para os moradores, essa comunidade é típica de pescadores artesanais
na zona rural e confirmada pela liderança da comunidade. O EIA, no entanto, ignora essa identidade. Reproduzo,
abaixo, parte desse trecho deplorável nos estudos ambientais, que por si só
invalidaria todo o resto.
“De acordo com a liderança
comunitária entrevistada, representante da Associação de Moradores, a
comunidade Aruri surgiu em função das atividades de garimpo, aproximadamente na
década de 1980, no contexto de ocupação do município de Trairão. Está
localizada a uma distância estimada de 345 metros do traçado previsto para o
empreendimento, às margens da rodovia BR-163 e do rio Aruri, como ilustra a
Figura 868 e a Figura 869. Possui aproximadamente 40 (quarenta) famílias, cujo
abastecimento de água é feito por poço ou cacimba. A destinação do esgotamento
sanitário é fossa, vala ou o próprio rio, e o lixo ali produzido é queimado ou
enterrado, prática comum em localidades rurais, especialmente pela inexistência
de serviço regular de coleta de resíduos sólidos. A Figura 870 retrata o padrão
residencial das casas instaladas às margens da rodovia BR-163, enquanto a
Figura 871 traz ponto de venda de pescado e restaurante.”
“(...) a extração de cassiterita
muito intensa na região.”[3]
“Os moradores praticam a pesca nos
rios Jamanxim e Aruri, nos locais permitidos pela legislação do Parque Nacional
do Jamanxim.”
O
acesso à pesca de subsistência na comunidade Aruri é permitido apenas em
obediência à legislação do Parque Nacional do Jamanxim. Essa UC federal
protegida integralmente para que comunidades tradicionais possam sobreviver e
cuidar da riqueza que representa, no entanto, pode ser impactada pela
construção e funcionamento da ferrovia.
PASSIVOS
AMBIENTAIS
Em
2017 a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) realizou uma Audiência
Pública (nº14/2017) para apresentar a Ferrogrão (EF 170) e deixou de apontar os
passivos ambientais ao longo do traçado da ferrovia. Não consideraram a
importância desses passivos que, se somados aos impactos sinérgicos e
cumulativos decorrentes da construção, dariam a verdadeira dimensão do estrago,
complicando a obtenção das licenças, além de encobrir a realidade sobre os
custos implicados.[4]
No
projeto da ferrovia de 1.188 km, que atravessa a Amazônia de sul a norte, além
de escamotearem os passivos ambientais, ignoraram os riscos inerentes à
construção, haja vista a existência dos processos de degradação provocados pelo
uso predatório do solo, o desmatamento associado para expansão da agropecuária
e a ocupação fundiária. Deixou-se, inclusive, de mencionar os impactos já
criados nas Áreas de Preservação Permanente (APPs) pela mineração e garimpo,
ignorando que um obra como essa tem o potencial de amplificar a destruição da
região. E, acrescente-se, ainda, as agressões à fauna, o desaparecimento das
espécies e alterações na paisagem que impactarão o bioma amazônico e o cerrado.
A
já ocupada região, fragilizada e deteriorada com o avanço intensivo da
agropecuária, poderá sofrer ainda mais perdas do ecossistema, mais impactos
que ainda não foram estudados no contexto do processo de licenciamento ambiental.
Construir a ferrovia EF-170 levará ao aumento da exploração fundiária ao longo
do traçado que vai dividir a Amazônia em duas porções, usando a destruição de
terras indígenas, de comunidades tradicionais, de unidades de conservação para
desconectá-las definitivamente: a leste, região que abriga a bacia do rio Xingu
e a oeste que abriga a sub bacia do Jamanxim.
Não
resta dúvidas de que toda a intervenção nessa macrorregião, já tão fragilizada
pelas ocupações ilegais provocada pela rodovia BR 163 (construída nos anos
1970), poderá criar um novo processo facilitador das atividades de mineração e
garimpo, e consequente aumento do desmatamento. A fase de instalação da
Ferrogrão já pressupõe impactos negativos na ordem de mais de 90%, segundo os
dados do EIA/RIMA. A quem interessa?
Em
tempos em que se preveem o agravamento e aceleração das mudanças climáticas,
essas perturbações ambientais em uma localização tão complexa e interligada
pela biodiversidade do mosaico de unidades de conservação poderá significar
interferência no estoque de carbono e acelerar a extinção de espécies.
A
malha complexa de cursos d’água, superficiais e subterrâneos, será contaminada,
e determinará ondas de destruição dinâmicas que afetarão povos indígenas, ribeirinhos,
culturas e o esforço empreendido pelo Brasil e pela comunidade internacional para
reduzir e pôr fim ao aumento do desmatamento da Amazônia. Some-se a isso, a
deterioração do solo que colocará em risco as unidades de conservação e os
serviços ambientais. Continua na Parte 2.
[1] Texto
introdutório extraído de: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/615444-projeto-da-ferrograo-revela-novo-ciclo-de-exploracao-da-amazonia-entrevista-especial-com-telma-monteiro
[3] MEIO
SOCIOAMBIENTAL – Comunidades tradicionais – p.276
[4]
VOLUME I – ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL (EIA)
Tomo V - Passivos Ambientais
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